terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Nem só de drama se faz uma revolução (Da Obra de Haidee Cabral)

Soldados Paulistas chegam à estação.
Quase um ano havia se passado quando surgiu o boato de que havia “estourado” uma revolução. Os rapazes de Santa Rita, inflamados pelo nacionalismo, colocaram lenços vermelhos no pescoço e saíram marchando pela cidade como voluntários para lutar na revolução. No entanto, os arroubos de valentia desapareceram tão logo souberam que os paulistas estavam em marcha para ocupar as cidades do sul de Minas. Foi um corre-corre das famílias que, temendo o pior,deixaram suas casas às pressas para se alojarem nas fazendas. Os corajosos voluntários sumiram logo. As alunas internas da Escola normal depois me contaram que saíram todas correndo e se refugiaram em uma fazenda. A pressa foi tanta que saíram somente com as roupas do corpo e tinham que lavar suas peças íntimas no “rego”, quer dizer, no córrego, todos os dias.

A cidade ficou praticamente entregue às traças. Somente alguns poucos como meu pai e o Dr. Antenor insistiam em ficar, pois achavam que não havia perigo algum. Os dois se aproveitavam da cidade vazia, perambulando pela praça, fazendo xixi nos jardins e rindo do medo descabido dos conterrâneos. Meu pai era um homem alegre e brincalhão que não perdia o rebolado nas mais difíceis situações. Continuava, normalmente, os seus afazeres.

Um dia, ao caminhar até o centro telefônico, descobriu que o mesmo havia sido ocupado pelos paulistas. Sem a menor cerimônia, perguntou se podia fazer uma ligação para o Rio e, ao ser questionado por um dos soldados sobre onde eles poderiam conseguir alguns víveres, respondeu com presteza e educação, o que quase lhe rendeu cadeia. Papai fora acusado de ajudar o inimigo.

Meu avô Cleto, muito temeroso da Revolução, foi um dos primeiros a sair da cidade levando a família para o seu sítio que ficava no bairro dos balaios. Deixou sob nossa responsabilidade o trato das galinhas de minha avó e de seus passarinhos. Diariamente, fomos até a casa vazia cumprir nossas obrigações, mas um dia, ao colocarmos a chave na fechadura, nos deparamos com um grupinho de soldados paulistas. Eles se aproximaram e perguntaram:

- O que a moça bonita está fazendo aí? Não consegue abrir a porta?

Eu, tremendo de medo, não consegui nem achar a fechadura, mas eles apenas sorriram para nós e se foram. Quando estávamos para sair, olhamos para a greta da janela e vimos outro grupo passando na praça. Com medo, ficamos quietinhos e esperamos que fossem embora para sairmos. Alguns dias depois, ao irmos novamente à casa da vovó, vimos virar a esquina um soldado paulista. Tremíamos como varas verdes mas, ao invés do pior, ele veio foi me oferecer um cravo vermelho. Eu, meninota, nunca tinha ganhado flores antes e achei aquilo uma beleza!

Cheguei em casa com o cravo e contei feliz da vida o acontecido para minha mãe que, apavorada, ouviu minha história. Os amigos que ainda restavam na cidade, estavam a convencer meu pai sobre os perigos que duas crianças corriam ao caminharem sozinhas na cidade sitiada pelo inimigo. A eles, agora, se juntava minha mãe, que não podia nem pensar nos riscos que a filha poderia correr. Fomos, então, levados pelo meu pai para o sítio do meu avô. Meu pai apenas nos deixou lá e voltou em seguida à cidade, para desespero da esposa.

A casa do sítio, que não era muito grande, não tinha mais como comportar tantas pessoas. Estava apinhada! À noite, colocávamos colchões e cobertores no chão e deitávamos todos enfileirados. Não tinha nem onde pisar. Era um tapete humano! Em um dos cômodos ficavam as mulheres. Em outro, os homens e os meninos. Toda noite, aparecia alguém a pedir pouso, o que só aumentava o número de pessoas na casa.

Um dia, apareceu um senhor amigo e pediu pouso somente para uma noite, pois estava a caminho de ou-tras cidades. Na casa, não tinha mais onde ficar e o senhor instalou-se para dormir junto da meninada. No meio da noite, o Heitor deixou escapar um “pum”e um menino outro... foi uma sinfonia. O tal senhor sentou-se no colchão e com sua fala fina, disse:
- Será opilado ou metralhadora?
Foi uma gargalhada só. Todos acordaram. Até as mulheres que estavam no outro quarto. Nunca mais nos esquecemos disso e meu irmão contava a história em todas as rodas.
Quase ao final da revolução, uma tropa de mineiros, perto de Piranguinho, encontrou-se com outra tropa aliada. Como estava muito escuro, pensaram que se tratava do exército inimigo e abriram fogo. O episódio virou chacota e, depois disso, sempre que ia a São Paulo meus primos paulistas faziam questão de lembrar.

Ao término da revolução, a volta dos paulistas acontecia pela Rede Mineira de Viação e era um acontecimento para as mocinhas da cidade, que não perdiam a oportunidade de flertar. A cada notícia de que os soldados paulistas vinham nos trens, saíamos a correr da sala de aula até a estação à espera dos soldados. A professor, muito sem graça, não teve como chamar nossa atenção, por cabularmos aula. Desde então, fizemos o que nos dava na veneta.

Numa outra ocasião que fui à estação para vê-los, me deparei com um advogado muito amigo da família.O trem parou e um rapaz muito bonito, que estava a bordo, começou a me olhar. Vendo o interesse do moço, eu mostrei o dedo anular em um gesto para descobrir se ele era casado. O amigo advogado, que estava ao meu lado, vendo o gesto que fiz,  morreu de rir e, a partir desse dia, todas as vezes que ele se encontrava comigo na rua, fazia o mesmo gesto e ria muito.

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