quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Aos 95 anos, Haydée Cabral escreve biografia e é entrevistada pelo Empório

Como surgiu a idéia de escrever um livro sobre sua vida?

Eu comecei a escrever o livro há dois anos, por insistência das netas. Toda vez que meus familiares vinham passar as férias no meu sítio, pediam para contar os causos da “Fazenda do Paredão” ou de minha mocidade em Santa Rita. Cada dia eu contava uma história. Uma das minhas netas, a Flávia, ouvia os contos e ia se interessando até chegar um dia em que ela pediu para que eu escrevesse um livro. Ela então conseguiu um gravador e tudo o que eu contava ela ia copiando. A Flávia mora em Cingapura e era preciso esperá-la chegar para continuar o papo. Demorou um pouco, mas um dia acabamos o livro. (Risos)

Como foi a sua infância em Santa Rita?

Minha mãe teve quinze filhos. Quatro deles ela perdeu ainda pequenos. Os outros onze foram criados junti-nhos. Os meninos estudavam no Instituto Moderno e as meninas eram internas na Escola Normal. Nesse livro eu conto as artes que eu fazia no internato e os castigos que eu tomava. Uma vez, as meninas maiores nos contaram que tinha um panelão enorme cozi-nhando a merenda das crianças e disseram pra eu ir ver o que era. Quando eu entrei na cozinha, vi que era “carne com batata”, mas saí contando pra todo mundo que era “carne com barata”. Das duzentas internas, todas ficaram ressabiadas com aquilo e ninguém quis comer a refeição. Quando a Dona Mariquinha viu aquilo, deixou todo mundo de castigo, até descobrir porque ninguém comeu. Ficamos um tempão lá, mas ninguém contou quem espa-lhou aquela história.

A senhora era muito arteira?

Eu pintava muito! Nossa... Na Escola Normal tinha uma escada de madeira muito bonita e todo dia, na hora do banho, colocava a toalha no parapeito e descia escorregando. Um vez, quando eu cheguei lá embaixo, caí nos pés da regente, Dona marieta. Ela falou: “Muito bonito! Vou falar pra Dona Mariquinha!” Eu pedi pelo amor de Deus para ela não contar, mas ela contou. Na hora do jantar, o senhor Juca Barbosa, que dirigia o internato junto com sua irmã, me chamou e disse: “Amanhã eu quero ver você descer a escada, como uma moça de família, e vai me prometer que não fará mais isso!” Só não fiquei de castigo porque ele era muito amigo do meu pai! (Risos)

Como era Santa Rita na sua infância?

Santa Rita, nessa época, não tinha ruas calçadas. A gente brincava na rua, andava de patins ao redor da igreja e, toda tarde, nos reuníamos em frente à casa das amigas para brincar de pique. As portas ninguém fechava. Era tudo muito tranquilo. As casas eram todas baixinhas e davam de frente para a rua.

Quais eram as suas brincadeiras?

Eu convivi minha infância entre 7 irmãos homens. Minha mãe dizia que eu parecia menino! Eu subia em árvores e era goleira do time masculino - as traves eram a entrada do mata-burro. Pra levar os ternos do meu pai à lavadeira eu ia com minha irmã, andando por dentro do córrego. (Risos) 

Isso foi na Fazenda do Paredão? Conte um pouco sobre ela

Morávamos em uma fazenda modelo. Lá tinha escola, luz elétrica, bomba de gasolina, Fábrica de manteiga e armazém. Tudo isso na década de 20! Meu pai era muito moderno. Ele ia sempre ao Rio de Janeiro e vivia trazendo novidades pra gente. Nós ganhávamos os brinquedos mais bonitos que existiam. Meus irmãos tinham máquinas a vapor, trem de ferro e outros brinquedos maravilhosos. Como não existiam essas bonecas de hoje, as nossas eram de biscuit.  Lá em casa tinha gramofone e eletrola. Meu pai era muito refinado. Só ouvia músicas clássicas.

Dizem que existia uma outra estrada entre Santa Rita e Bela Vista, que acabou engolida pela floresta. Essa lenda é verdadeira?

O que eu sei é que ele construiu uma estrada que ligava Santa Rita a São Gonçalo. Passávamos por três fazendas dele para chegar à casa de sua mãe de criação. Ele tinha um Studebaker baixo e, no centro da estrada, crescia capim. Para chegarmos era preciso o chofer ir cortando o mato com um enxadão até chegar lá. 

Seu pai era a pessoa mais importante da cidade?

Era “uma das”, né? (Risos) Ele não era o mais importante, mas todos os conheciam como “O Barão do Café”. Ele era produtor, vendedor e comprador de café. 

 É verdade que na sua casa existia uma sala secreta?

Dessa sala secreta eu não sei, não. Me lembro de uma alcova que existia lá. Era um quarto sem janelas. Era lá que minha mãe guardava os mantimentos e também onde nos deixava de castigo. Certa vez, estávamos eu e meu irmão cumprindo castigo lá, quando tive a ideia de comer uma rosca Rainha, feita com 24 ovos: 
“Sobe nas minhas costas e pega a rosca.” - eu disse ao meu irmão”. 

Bem na hora em que ele subiu, minha mãe entrou, meu irmão se assustou e derrubou as latas! Tivemos que pegar tudo e ganhamos castigo dobrado! Naquele tempo as coisas eram diferentes. Hoje em dia, as crianças nem sabem mais fazer arte... (Risos)

Como era a vinda à cidade?

A viagem era de carro de boi. Quando vínhamos para cá, minha mãe fazia uma matula com farofa pra gente. Ela sempre forrava o chão do carro com colchão e nós vínhamos deitadas, ouvindo aquele barulho. Nosso maior prazer era chegar à venda do senhor Brandão para comprar bolachões de rapadura. Aquilo era delicioso!

Até quando a senhora estudou no internato (Escola Normal)?

Eu saí do internato quando meu pai perdeu a fazenda (crise de 1929). Foi uma época muito difícil. Meus irmãos ainda não eram formados e muita coisa aborreceu minha família. Como eu ainda era muito menina, nem percebia. 

Seus irmãos passaram dificuldades com a perda das terras?

A Jurandy, principalmente, sofreu muito por aqui. Como ela havia sido Rainha dos Estudantes e tinha até uma marca de manteiga com o seu nome, as meninas da cidade a perseguiam muito.

Conte-nos algo sobre isso...

Certa vez, um padre amigo do meu pai a nomeou professora, mas as moças daqui foram pedir para o Presidente da Câmara não deixar. Como ele era nosso vizinho, vimos pela fresta da porta aquilo tudo acontecer e Jurandy chorou muito. Certo dia, uma neta do senhor Custódio Rosa foi chamada para lecionar em São Lourenço, mas, naquela época, não era comum uma mulher se mudar a trabalho. Jurandy acabou indo no seu lugar. Passou a  lecionar no grupo, a ensinar piano e datilografia, e ainda fazia a escrita de um estabelecimento para mandar dinheiro aos pais. Como seu sonho era voltar, ela depois ainda fez curso de aperfeiçoamento, mas não a deixaram assumir o cargo de diretora do grupo, dizendo que aquele não era serviço de mulher. Colocaram outra diretora em seu lugar, o que a deixou indignada. Ela então se tornou professora de metodologia em Formiga. Foi nessa ocasião que ela casou com um viúvo de sete filhos, com quem teve mais quatro. De lá, se mudaram para Belo horizonte onde terminaram a vida muito felizes e  bem de vida. Um de seus filhos até trabalhou na Globo, onde fez várias novelas. Era um ator chamado Rodrigo Santiago e faleceu no Rio de Janeiro, poucos dias antes dela.

Você esteve na Coroação de Jurandy como Rainha dos Estudantes?

Eu não perdia um baile em Santa Rita! Meu primeiro baile foi em 1927, justamente na Coroação de Jurandy, no salão do IMEE. Eu tinha 12 anos e, quando me irmão chegou para nos pegar, eu e a Corália, no internato, Dona Mariquinha não quis me liberar. Disse que eu era muito pequena e levada. Foi preciso meu pai ir lá pedir para eu conseguir participar da festa! O baile foi lindo! Os oficiais do regimento estavam todos no ginásio do Instituto. A capa da Jurandy veio do Rio, junto com seu vestido. Ele também trouxe roupas para todos nós.

Quando eu cheguei no salão, comecei a dançar com todo mundo e minha mãe quase me matou! (Risos) A orquestra era de fora. Os rapazes vieram todos do batalhão. Existia um barzi-nho no canto do salão, mas era preciso pagar para retirar as bebidas. Depois disso, nunca mais perdi uma festa!

Como era o Clube Literário?

O clube literário era lindo! O baile que meu pai fez para agradecer pela escolha de sua filha como rainha, foi lá. Lembro que, na hora dos preparativos, derrubei um pudim na escada e minha mãe ficou uma fera. Lá dentro, era tudo muito bonito. Havia um lugar para a osquestra e uma grade de madeira muito bonita. Como eu tinha muitos irmãos para me vigiar, eles ficavam dizendo para eu não dançar com este ou aquele que tinha bebido. Eu aproveitei muito a vida! (Risos)

E o Cine Santa Rita?

Lá existiam as frisas, os camarotes e o galinheiro, em cima. A gente pagava as frisas por ano, mas não íamos sempre porque era preciso a mãe levar. Meu pai adorava quando passava os filmes do Carlitos ou do Gordo e o Magro. Antes do cinema, íamos à confeitaria do Constantino, embaixo das casas demolidas. Ele vendia doces maravilhosos! Fazia um doce de fita, com coco e calda, delicioso! 

Meu pai, que também adorava açúcar, ficou diabético no final da vida e precisamos esconder os doces lá de casa. Um dia, fomos até o senhor Constantino e perguntamos se o pudim era gostoso. Ele respondeu: “Superior de bom! Coronel come inteiro de uma vez!” Foi aí que nós descobrimos que ele estava comendo escondido. 

Como adquirir o seu livro?

Eu fiz o livro em benefício do Asilo, mas os que sobraram estão comigo. Quem quiser um exemplar é só me procurar. A minha grande satisfação neste trabalho foi ver a alegria das irmãs, durante o lançamento do livro. Fiquei muito feliz!

(Concedida a Carlos Romero)

Oferecimento: Lanchonete do Modesto

Um comentário:

  1. Fiquei surpreso e extremamente feliz ao me deparar com estes causos da querida Da. Haidée. Tenho sempre em minha memória os anos felizes que passei em Santa Rita estudando eletrônica na ETE. Naquela época nossa "turma" de amizade composta por Zenaide, Zelma, Lenice, Stela, Giba, Rubeny, Eliezer, eu e outros vivíamos tranquilos no clima de não violência dos anos 60, vigiados por Da. Haidée e Dr. Junqueira.
    Minha angústia de tomar conhecimento - tardiamente - do falecimento de Pe. Vaz e Pe. Villa foi compensado pela leitura da lúcida e jovial narrativa de Da. Haidée.
    Um grande abraço a você e às "meninas".

    Jalmes F. Dollis
    Goiânia - GO

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