“Letras são coisas, e não imagens de coisas”. A frase é de Eric Gill, tipógrafo britânico, mas poderia ser de seu contemporâneo Augusto Telles, maestro santa-ritense que se viu obrigado a abrir uma oficina gráfica para imprimir as próprias partituras. Outra Telles, minha contemporânea Nídia, preferiu criar um blog e nele descreveu os atributos dos ajuntamentos de letras: “Para mim, as palavras têm gosto, têm cheiro, têm alma”.
Se as palavras são capazes de dar vida a coisas, essa força mágica deve estar presente também nos nomes próprios. “Um nome – cantam Beto Guedes e Ronaldo Bastos em sol com sétima – se escreve fundo”. Braz Fernandes Ribas está, certamente, entre os nomes indeléveis que conheço. Primeiro, porque não conheço dois iguais. Segundo, porque pertenceu a alguém que deixou marcas profundas por onde passou.
Trago esse nome gravado com força na memória e na alma, mas demorei a entender por quê. Eu o li pela primeira vez no final da década de 1990, na página 232 do livro A Diocese de Pouso Alegre, no Ano Jubilar de 1950. Essa publicação, organizada pelo cônego João Aristides de Oliveira, no 50º aniversário de criação do bispado, resume a história de cada uma das paróquias da região, entre as quais a de Santa Rita.
Sem Braz Fernandes Ribas, a Paróquia Santa Rita de Cássia talvez não existiria. Teria, no mínimo, outra trajetória. E outra seria a origem da cidade que se formou em torno da primeira capela dedicada à padroeira. O resto da história todos nós conhecemos: cumprindo promessa, Manoel e Genoveva da Fonseca doaram terras para a construção da igrejinha, que virou matriz e depois santuário, presenciando o progresso à sua volta.
A origem de Santa Rita do Sapucaí, porém, não se circunscreve aos oito alqueires de fé cedidos em 1821 pelo casal piedoso sobre o qual pouco se sabe, quase nada. Nos últimos anos, pesquisas históricas desenvolvidas por alguns de nossos conterrâneos têm resgatado o protagonismo exercido pelo capitão Braz Ribas, no período de formação do núcleo populacional que resultou na cidade que temos hoje.
Segundo o estudo Santa Rita do Sapucaí – Sua História Revisitada (2009), do saudoso Adirson Ribeiro, nossa terra conservou o nome de Santa Rita do Vintém até aproximadamente 1850 por “ter tido sua origem às margens do Riacho Vintém, na Fazenda Água Limpa do Vintém, de propriedade do Capitão Braz Fernandes Ribas”. Nos oratórios dessa e de outra fazenda, a da família Ribeiro de Carvalho, concentravam-se os ofícios religiosos, antes e depois da primeira missa no município, celebrada em 1825.
“Dono de grande sesmaria e respeitado pela Igreja e pelo Estado”, nas palavras do professor Ivon Luiz Pinto, Braz Ribas conquistou prestígio social e político no Sul de Minas. Em 1829, elegeu-se suplente do juiz de paz José Joaquim Leite Ferreira de Melo, pai do cônego e futuro senador José Bento Leite Ferreira de Melo, de Pouso Alegre. Dois anos mais tarde, foi um dos primeiros cidadãos santa-ritenses a aderir à Sociedade dos Defensores da Liberdade e Independência Nacional, liderada pelo legendário José Bento.
Coincidência ou não, José Bento era o nome de um dos filhos de Braz e sua esposa, Floriana Maria da Conceição. Os outros dois se chamavam Roque e Ana Victória. Que importância têm esses nomes? Para a cidade, não sei. Para mim, além de curiosidades históricas, são dados genealógicos. Há quatro anos, descobri que sou tetraneto de Ana Victória – portanto, pentaneto do capitão Braz.
Devo esse desvelamento de minhas raízes familiares a dois brilhantes pesquisadores dos primórdios de Santa Rita: Adirson Ribeiro e seu discípulo Luiz Gustavo Torquato Villela, o Neco. Adirson produziu, em 2007, com a contribuição de Neco, um estudo a respeito da família Vilela. Ao tomar conhecimento desse trabalho, em 2011, pouco tempo após a morte do autor, encontrei em suas páginas o elo perdido entre mim e Braz: Quirino Antônio de Araújo e Silva.
Quirino era o marido de Luiza Cândida Vilella Ribas, filha de Ana Victória e neta de Braz. É outro nome que se escreve fundo em mim. Quando o li no estudo sobre o clã dos Vilela, de imediato me soou literalmente familiar, já que esse prenome aparecia ao lado de Luiza Cândida, no topo da árvore genealógica que eu havia rabiscado na infância. Poderia estar diante de uma incrível combinação de homônimos, mas só precisei de uma rápida conversa com minha avó paterna, neta do casal, para confirmar o parentesco.
Emoções conflitantes tomaram conta de mim naquele momento. Estávamos ali Haydeé, minha avó, José, meu pai, e eu – três gerações de descendentes de um homem que participara da fundação de Santa Rita e que, ao mesmo tempo, tivera grande número de escravos. Orgulho ou vergonha? Difícil descrever o que senti, pois tinha acabado de lançar um livro-reportagem sobre a comunidade negra santa-ritense, cujo capítulo inicial, No Tempo do Cativeiro, relata a escravidão no município e cita meu pentavô Braz.
Passei a enxergar meu livro como um involuntário, tardio e insuficiente pedido de perdão de minha família aos descendentes dos escravos que a ela pertenceram. Por outro lado, comecei pesquisas e contatos para investigar os primeiros anos de Braz Ribas, vividos em Portugal. Sabia, basicamente, que ele nascera em meados da década de 1770, na “freguesia de São Lourenço de Paranhos, bispado de Braga”, conforme seu testamento.
O primeiro resultado de minha modesta investigação histórica apareceu timidamente em janeiro de 2013, quando recebi por e-mail a resposta a uma mensagem que havia encaminhado à Junta de Freguesia de Paranhos questionando se aquela era a localidade que eu procurava. Em menos de 500 caracteres, o então presidente da junta, José Manuel Dias Fernandes, manifestou alegria por meu interesse e pediu dados de minha família para “trocar informações culturais”.
Ao envio dos dados solicitados seguiram-se enorme expectativa e longo silêncio. Portugal estava em transe e Paranhos, em transição. Em decorrência da crise financeira global deflagrada em 2008, os três grandes credores da dívida portuguesa (FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia) impuseram ao país, entre outras medidas, a reorganização territorial das freguesias, que são subdivisões dos municípios.
Com pouco mais de 100 habitantes, Paranhos acabou agregada, em setembro de 2013, a outras duas localidades do município de Amares. Enquanto se formava a União das Freguesias de Caldelas, Sequeiros e Paranhos, eu tentava, sem sucesso, restabelecer contato com o outro lado do Atlântico. Como que trazida pelo mar, no interior de uma garrafa, a segunda mensagem chegou um ano, nove meses e 11 dias depois da primeira.
Quem me escrevia agora era o novo presidente da Junta da União das Freguesias, José Manuel Fernandes Almeida. Figura extremamente simpática e atenciosa, mantém comigo extensa correspondência eletrônica, desde então. Graças à colaboração dele e do amigo Neco Torquato Villela, estou prestes a ver realizado um sonho: Santa Rita e Amares declaradas cidades-irmãs pelas autoridades dos dois municípios.
Um ano atrás, localizei no Arquivo Distrital de Braga, pela internet, o registro de batismo de Braz Fernandes Ribas, nascido no dia 11 de julho de 1776, exatamente uma semana após a Declaração de Independência dos EUA. Ele morreria em 22 de maio de 1848, dia de Santa Rita de Cássia, no povoado que ajudara a criar. Nasceu para fazer história; deixou rastros ao morrer. Não viveu em vão; seu nome, enfim, renasce.
Oferecimento: