Quem viveu na região por volta de 1982, certamente conhece a história de Fernando da Gata. Com apenas 21 anos, o migrante cearense causou grande pânico por onde passou, até ser morto em Santa Rita do Sapucaí. Conheça a sua história através de uma reportagem de Luiz Fernando Emediato.
O ladrão está morto
Na garagem da delegacia, metido num caixão, trajando terno e gravata, com os braços estendidos “porque a um demônio não se cruzam as mãos”, Fernando da Gata estava morto.
Morto e exposto como um troféu ou animal cuja caçada merecesse a realização de um espetáculo. Calcula-se que 60 mil pessoas de Pouso Alegre e das cidades vizinhas entraram na fila para ver o corpo do “perigoso facínora”: um migrante nordestino que estava “sujo” na polícia cearense, viajou para São Paulo, trabalhou como servente de pedreiro e acabou roubando casas e estuprando pessoas, segundo a polícia, que o batizou de “Fernando da Gata” por sua agilidade e o tornou famoso.
A lenda durou menos de dois meses. Do anonimato para as manchetes dos jornais, depois de lances dramáticos, Fernando fugindo pela mata como um animal selvagem, seminu, todo ferido e sangrando, cruzando rios a nado, trocando tiros com a polícia e até sendo esfaqueado por um bêbado. Depois de vários confrontos, foi encontrado morto no meio de árvores por cães policiais. Ninguém sabe ao certo quem o matou, tantos tiros recebeu. Na sua bolsa, havia um chapéu, calça, camisa, quinze cruzeiros, uma correntinha de metal vagabundo, um envelope de antibiótico e um exemplar do jornal Notícias Populares com a manchete: “A ordem agora é castrar Fernando da Gata”.
Era o fim. Para ele e para a população que, agora, respirava tranquila. Durante todo o dia, milhares de pessoas expressavam um ódio irracional e homicida. Houve quem quisesse tomar o cadáver, amarrá-lo num carro e arrastá-lo pela rua. “Que pena que está morto” - dizia um vendedor de vassouras - “Devia morrer devagar.”
O destino de Fernando da Gata foi ter morrido assim, em plena e trágica glória, aos 21 anos, e tão lendário quanto os mais experientes bandidos. Agora, estava esticado com os olhos ainda arregalados, boca semiaberta.
- Quantas pessoas ele matou? – perguntou alguém.
Perplexas, as pessoas respondiam que nenhuma. Havia apenas a notícia de que teria matado alguém no nordeste. Para justificar a carnificina, alguém lembrou que ele teria estuprado menores em São Paulo.
- Ah! Eu não disse? gritou um sujeito alegre na fila.
Esticado no caixão, Fernando Soares Pereira deixou uma viúva, Maria de Fátima Félix da Silva, 19 anos, e um filho de seis meses, Vitor.
A história
A trágica e absurda história de Fernando da Gata começou em abril de 1982, quando aconteceram, em São Paulo, dezenas de assaltos e estupros praticados, aparentemente, pelo mesmo homem. As investigações chegaram a Russas, no Ceará, onde a policia procurava um assaltante com o mesmo modus operandi. A polícia chegou, então, ao migrante nordestino Fernando Soares Pereira. Seria ele o estuprador.
A história de Fernando não seria diferente da de milhares de outras envolvendo migrantes nordestinos que chegam a São Paulo em busca de emprego e vida melhor. Ele chegou com a mulher grávida. Seu filho nasceu enquanto trabalhava na construção civil. Os policiais descobriram o endereço do seu emprego e, posteriormente, do posto de saúde de Maria de Fátima, onde buscava leite doado às crianças carentes. E então o encontraram.
Oito policiais invadiram a sua casa e o encontraram na sala com a mulher e o filho. Escudando-se na mulher e na criança, afirmam os policiais, ele conseguiu fugir, não sem levar um tiro na perna, deixando, atrás de si, um rastro de sangue.
Quase 200 policiais estavam no seu encalço. A razão de tamanha perseguição? Fernando era acusado de ter assaltado mais de 20 mansões e ter estuprado várias menores, filhas de famílias ilustres. Os pais ofereciam boas recompensas para quem o pegasse, de preferência morto.
Pânico na cidade
Quando o “Fantástico” deu a descrição do bandido, a população não duvidou: Fernando estava em Pouso Alegre e já era responsável por três assaltos, desde a noite de sexta-feira. As vítimas reconheceram sua fotografia e a cidade entrou em pânico.
Esgotaram-se nas lojas os estoques de revólveres, carabinas e garruchas. Trincos, cadeados, correntes e fechaduras passaram a ser vendidos no câmbio negro. O bispo, Dom José D’Angelo, conta que um amigo comprara um revólver e, ao mostrar à mulher, ela levantou o travesseiro e mostrou outra arma: “Eu também comprei uma.”
“A cidade entrou num estado de neurose e tensão – disse o bispo. Nesse dia mesmo, já prevendo a tragédia, adverti que matar não era humano, nem mesmo ladrões, e que pessoas erradas poderiam morrer.” Começou, então, uma série de telefonemas anônimos em que as pessoas se identificavam como o assaltante e diziam: “O próximo vai ser você!” Um homem que matou a filha recebeu uma ligação dessa na véspera.
Caçada
A cidade entrou num delírio de histórias fantasiosas. As ruas esvaziavam-se às primeiras horas da noite e crianças choravam ao menor ruído nas casas. Armas eram apontadas em direção de sombras, geralmente por pessoas trêmulas que jamais haviam visto um revólver. O delegado, espantado, foi à Rádio Clube na companhia do bispo e de outras autoridades para tranquilizar a população.
Não deu resultado. Já se pensava até em organizar patrulhas civis para caçar o assaltante. O pânico aumentou quando a população soube que o Fernando havia escapado da armadilha montada pela polícia.
De meia em meia hora, em edições extraordinárias, a Rádio entrou em regime de guerra estendendo o plantão madrugada a dentro.
Morte
A morte chegou mais perto de Fernando Soares Pereira, quando tentou roubar um bêbado numa trilha próxima a Cachoeira de Minas. O homem defendeu-se dando uma facada certeira em Fernando que fugiu berrando de dor. O bêbado, que também estava armado com um revólver, deu-lhe ainda dois tiros, mas errou. Eram duas da madrugada de uma sexta-feira.
A polícia seguiu no encalço de Fernando, enquanto policiais paulistas seguiam para a região de Varginha onde um sujeito parecido foi visto pedindo carona. O rapaz fugiu pela mata, em direção a Santa Rita do Sapucaí. Nervosos, setenta militares seguiram para Santa Rita, comandados pelo capitão Odilon José Gomes. Ao meio-dia da sexta-feira fizeram uma varredura na região com o auxílio do tenente Figueiredo, comandante do pelotão de Santa Rita.
Por volta das 19 horas, receberam a notícia de que um homem tentara agredir duas moças num cafezal, mas que elas tinham conseguido fugir. Ali, receberam a notícia de que um rapaz só de cuecas, ferido, aparentemente desorientado, vagava pelas imediações do Tiro de Guerra de Santa Rita. Já era noite quando o descobriram lá e atiraram nele. O assaltante correu em direção ao rio Sapucaí e, mesmo ferido, atravessou a nado 30 metros de água fria. Do outro lado, esperava-o o sargento da guarda florestal, José Lúcio Campos, que atirou nele. Fernando caiu ferido outra vez, mas conseguiu levantar-se e cruzar o rio de volta, num esforço quase sobrenatural.
É difícil que tenha conseguido atravessar o rio nadando e com um revólver na mão, mas a polícia jurava que ele assim o fez. No outro lado, ele conseguiu desnortear os policiais e, só pela madrugada, o corpo foi encontrado. Segundo a PM, estava no meio de umas árvores, todo ensanguentado e rasgado. Seus objetos não estavam com ele. Tinham sido encontrados muito antes em outra região, onde uma mulher idosa, ao vê-lo ferido, tentou segurá-lo, mas desistiu quando Fernando gritou:
- Pelo amor de Deus, me deixe fugir!
E assim fez, saltando um estábulo e se embrenhando na mata.
“Queríamos pegá-lo vivo. – garantiu o tenente-coronel Itamar – mas não foi possível. Nem sei quem o matou. Ninguém viu, estava escuro. Foi morrendo aos poucos, de hemorragia. Devia estar há uns 3 dias sem comer e sem descansar. Pode ter morrido de esgotamento. Foi uma operação implacável.”
Sem nenhum familiar para resgatar o corpo, Fernando Soares Pereira seria enterrado em uma cova rasa, no cemitério de Pouso Alegre.