Quando era criança, fui com um amigo à loja do senhor Jovino Batista, enfiei um disco debaixo da camiseta e saímos correndo. O neto do comerciante, que trabalhava como balconista, nos reconheceu e ligou para a minha casa. Eu coloquei um boné para não ser reconhecido, troquei de roupa e fui lá com o meu pai. O rapaz agiu de uma maneira bacana: olhou bem para o meu rosto, virou para ele e disse que havia se enganado. Alguns minutos depois, o telefone da minha casa tocou novamente. Ele disse que ficou sem graça, mas que havia me reconhecido. “Vamos voltar lá.” – disse o meu pai.
Ao chegarmos à loja, meu pai tornou a perguntar se era eu e o vendedor balançou afirmativamente a cabeça. Ele pagou pelo disco e me disse: “Está vendo? Se você queria era só me pedir. Toma... o disco é seu,” Meu pai quebrou o disco na minha cabeça e me entregou para que trouxesse de lembrança. Em seguida, levou-me a um comissário de menores, que era nosso vizinho, para que tomasse providência quanto ao meu caso. Coincidência ou não, era o meu avô, Antônio Bernardino. Meu pai foi taxativo: “Quero que o penalize como achar melhor.”
Meu avô me pediu para sentar ao lado da cama e me deu conselhos, explicou o valor da honestidade e reprovou a minha conduta. Naquele dia, fui educado de todas as maneiras. Meu pai, empregou a força. Meu avô, as palavras.
Demorou para eu absorver o que havia acontecido. Por alguns dias, chegava em casa e meus pais se recusavam a falar comigo. Daquele episódio em diante conheci o valor do “nome” para a minha família. Eu soube o que significava uma reputação e passei a zelar por ela. Em resumo, aprendi da forma mais dura, o que era caráter e jamais tornei a tocar no que não era meu.
As lições que o meu pai me dava eram sempre severas. Algumas me deixavam profundamente magoado e, ainda criança, não entendia de onde vinha toda aquela dureza. Quando chegou a adolescência, comecei a processar tudo o que vivi e a questionar o seu comportamento. Passamos um bom tempo afastados. Nenhum dos dois dava o braço a torcer.
Quando terminei a faculdade, voltei para Santa Rita e meu pai foi fundamental nos primeiros anos de vida adulta. Estava desempregado, minha mulher (na época, namorada) grávida e eu dependia das “mesadas” dele para comprar fraldas e papinhas. Nesse período, tomei um choque de realidade, fiquei um pouco azedo e comecei a aprender sobre a vida. Foi um processo doloroso e meu pai acompanhava de perto, ajudando no que fosse necessário.
Em 2008, fundamos o Empório de Notícias. A ideia era apresentar textos construtivos, exaltar as personalidades locais e retratar a história. Não seria difícil. Eu colecionava jornais antigos desde a infância e meu pai era dono do maior acervo fotográfico – e cinematográfico - que a cidade já viu. Em todas as edições, sempre pedia ajuda e tinha em mente a sua aprovação. Será que ele vai gostar? Ele ficará orgulhoso se eu escrever sobre isso? Acho que será sempre assim.
Em uma das edições, meu pai seria o entrevistado. Eu não me sentia com liberdade para fazer perguntas sobre sua vida pessoal e Evandro Carvalho encarregou-se do trabalho, enquanto eu fotografava. “Luiz Carlos, muralha santa-ritense” – era o título. Ele ficou muito contente com aquilo, mas estava habituado com aquele tipo de coisa. Já havia concedido entrevistas sobre carnaval, sobre seus tempos de jogador profissional, sobre Sinhá Moreira e assuntos das mais diversas naturezas.
Enquanto meu filho crescia, eu começava a entender o meu pai e dar mais valor nos seus gestos. Ele e Gabriel eram agarrados. Não raramente, o moleque dava pulos nas suas costas e eu o repreendia por levar em conta que meu pai já não era tão resistente. Quando me tornei pai, uni os exemplos dele e de minha mãe e compreendi a importância da coerência, da atuação social, do interesse pelas raízes de nossa comunidade e da valorização das pessoas que estavam à minha volta.
Por incrível que pareça, a última lição que meu pai me deu, aconteceu em seu velório. Em momento algum tive coragem de adentrar o salão de eventos da Maçonaria. Meu irmão e minha mãe fizeram o mesmo. Eu sabia que, se o visse, teria uma fotografia dele que não gostaria de guardar. Pouco minutos após a chegada de seu corpo, inúmeras pessoas, de todos os bairros e camadas sociais, começaram a entrar. Cada uma delas remetia a um momento da minha existência com ele. Pouco a pouco, via figuras que estabeleceram conexões com tudo o que ele havia feito. Os primeiros a chegar foram seus amigos de futebol. Companheiros do Pouso Alegre, do Industrial, dos jogos de várzea e dos treinos dos veteranos vinham em grupos de várias gerações. Ao abrir o caixão, os soluços de Mazula me fizeram correr ao banheiro para chorar. Em seguida, foram chegando os moradores da Rua Nova e me lembrei das inúmeras vezes em que acompanhei meu pai nos preparativos para a Escola de Samba Sol Nascente, que ele ajudou a fundar, ou quando o time de seu grande amigo – o Samuelzinho – foi campeão invicto do campeonato da Liga. “Fiquei 3 campeonatos sem tomar um único gol” – dizia o meu pai com orgulho. Meus olhos marejaram quando chegaram os amigos do Bloco dos Democráticos. Meio sem querer, ouvia os comentários de que seria preciso colocar uma flâmula ou camiseta ao seu lado e aquilo me dava um baita orgulho.
Minha imaginação corria, enquanto tentava conter as lágrimas. Eu via pessoas que nem imaginava de onde eram e me emocionava com tamanha demonstração de afeto. Onde ele havia conhecido todas aquelas pessoas? Teria filmado seus casamentos ou aniversários? Seriam amigos da rua ou talvez clientes dos seus tempos de refrigeração? Não tinha a menor ideia. Aqueles pensamentos eram, vez ou outra, substituídos por alguns comentários ao redor: “Ele era meu ídolo no Pouso Alegre (Quando o time sagrou-se campeão mineiro). Ainda criança, pulava o muro do estádio para vê-lo jogar”; “Quando caí de bicicleta, estava à beira da morte e ele me levou nos braços até o hospital.”; “Ele fez um apanhado das cenas em que meu falecido filho aparecia e me deu de presente.”; “Eu estou chorando por ele e ninguém imagina por que. Luiz Carlos me ajudou muito, sem nunca contar a ninguém.” Esta última frase lembrou-me do dia em que um homem chegou à minha casa com um saco de mandioca e disse: “Eu morava na rua. Ele montou uma casa pra mim e me deu uma geladeira. Agora que virei agricultor, venho trazer um agradecimento.”
Ouvi dezenas de histórias naquele velório. Soube que, ao ser anunciado durante a missa o seu falecimento, houve uma grande comoção e várias pessoas começaram a chorar. Em determinado momento, um rapaz da Assembleia de Deus chegou até mim para dizer o quanto estava grato por ele tê-lo ensinado a filmar. Aquela passagem me remeteu aos anos em que trabalhei como iluminador nas filmagens de casamentos. Em uma das cerimônias na Assembleia de Deus, gravávamos o casório da filha do pastor. O sermão foi tão longo que eu cochilei em pé e queimei a careca de um convidado. Ao sairmos, meu pai disse, aos risos: “Eu também já estava quase dormindo.”
Eu esbocei um leve sorriso quando vi várias pessoas que meu pai havia botado apelido adentrarem, sem parar, aquele ambiente... Caçapa (que ele tratava com um filho), Xerife, Gaiola, Gentalha, Lambão e até sua inseparável cachorra, a Marmota (que batizamos de Nina) – estavam todos lá. Ele era mestre em botar alcunhas que se tornavam indissociáveis de suas vítimas. Centenas de pessoas na cidade tiveram os nomes esquecidos por sua causa e ele tinha orgulho disso.
No dia do sepultamento, a rádio Difusora fez um link ao vivo e prestou uma bela homenagem ao meu pai. Soube que várias pessoas ligaram lá para dar depoimentos. Na internet, centenas de comentários sobre a importância que ele teve em suas vidas começaram a surgir nos mais diferentes perfis. Aos poucos, diversas pessoas começaram a me adicionar como amigos, talvez por não saber (até então) que eu era filho dele.
No salão da Maçonaria não havia espaço para tantas coroas de flores. Algumas pessoas me pediram para deixar filmar, mas não tive coragem de permitir. Quem sabe ele até gostasse da ideia, mas seria dolorido demais reviver aquilo. Ao chegar o carro funerário, na hora do sepultamento, as coroas de flores não cabiam. Seria necessário fazer mais viagens para depositá-las no túmulo. Na saída, havia um grande número de pessoas. Algumas que eu nem conhecia, choravam copiosamente. Em frente ao jazigo da família Carneiro, local onde foram depositados os restos mortais do meu bisavô Bernardino, do meu avô Antônio, da minha tia Cida, dentre outros parentes queridos, algumas homenagens foram feitas e seu último ato foi aplaudido pelos amigos e parentes que ali estavam. Em nome da família “Democráticos”, o Mill anunciou que seria feita uma homenagem a ele e o hino do Bloco foi tocado. Confesso que jamais ouvirei aquela música novamente sem lembrar-me dele. Jamil, nosso grande amigo e que trabalha no cemitério, também fez um bonito discurso e finalizou: “É a primeira vez que peço a palavra para dizer alguma coisa em um sepultamento. Ele era muito querido.” Quando colocaram o último tijolo - cena duríssima, diga-se de passagem - lembrei-me da cena em que aprendi a andar de Mobilette: ele pulou da garupa e me deu um impulso para que eu continuasse sozinho.
No dia seguinte, o vazio. Eu abri os olhos, lembrei o ocorrido e pensei: “Meu Deus, aconteceu mesmo.” Na sala, seu computador estava montado sobre a mesinha, lá estava o DVD do casamento que havia gravado 6 dias antes e uma saudade que preenchia todos os cantos da casa. Enquanto tentava me recompor lembrei uma figura que eu estimava muito, a querida Alicinha Baracat, e imaginei como seria a entrevista que meu pai concederia ao desembarcar, mais leve e sem dores, do lado de lá. Com certeza contaria orgulhoso sobre a grande despedida que recebeu naquele 14 de março de 2014 e da alegria em ser tão efusivamente reverenciado por amigos que cultivou a vida toda.
Ao juntar os fragmentos de sua partida e transformar em uma lição que carregarei pela vida, concluo que quero ser uma pessoa mais simples e cultivar tantos amigos quanto ele conquistou. Quero tornar-me mais útil e ser feliz pela realização dos outros. Jamais pensei que aquele homem, forte que era, fosse embora tão rápido, e percebo que a vida é curta demais para darmos valor ao que é pequeno.
Agradeço muito a todos que, de uma forma ou de outra, prestaram homenagens e nos ampararam nos momentos difíceis. Para finalizar, uma frase que nunca disse: “Eu te amo, pai. Até algum dia.”
(Carlos Romero Carneiro)
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Parabéns Carlos! Seu relato é primoroso e mostra bem quem é teu pai. essa relação "pai/filho" é linda e me arremeteu ao passado "meu pai/eu". Eu também recebi lições de ética do meu querido e saudoso pai e por muito tempo não entendi o porque dele ser tão duro e tantas vezes inflexível quando se tratava de ética.
ResponderExcluirLinda homenagem!Seu pai foi um exemplo!
ResponderExcluirEmocionante Carlos. :)
ResponderExcluirNunca é tarde. Parabéns !!!
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