quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Aquela Carta (Por Ivon Luiz Pinto)

Fazia pouco tempo que eu morava nesta cidade. Tinha vindo de uma cidadezinha pacata e humilde em busca de trabalho e de estudo. Era lindo aquele dia em que cheguei. Dia de admirações! De surpresas. Era a primeira vez que eu saía de casa, era a primeira vez que ia morar numa cidade grande. Daí a admiração e a surpresa em tudo que encontrava. Quantas novidades. A cidade com suas colinas, jardins, rios e pontes era bela aos meus olhos curiosos. Um rio largo de águas grossas, diferente do ribeirão cheio de seixos da montanha onde nasci.
Numa das colinas estava a Igreja Matriz e, na frente dela, uma praça ajardinada e nessa praça uma fonte luminosa. A fonte me atraía de um modo especial, não só por ser novidade para mim, mas por causa dos movimentos que a água fazia, girando em pequenos jorros, com luzes que estavam sempre mudando de colorido. Todas as noites eu ia para a Praça e ficava horas encantado com os movimentos e cores que saíam da fonte.

Quando criança os meus pais se perderam de mim e eu fiquei a contemplar o carrossel do parque, com sua música, seus movimentos. Estava tão hipnotizado que nem percebi a chegada de meus pais. Agora a fonte era o meu carrossel onde a imaginação montava as linhas de água e abria as portas para um passado saudoso.

Foi aí, nessa praça, que eu a vi em vestido de organdi, conversando com amigas, rindo não sei de quê. Cabelos longos, presos atrás deixavam em destaque o rosto harmonioso. Seus olhos buliçosos se encontraram com os meus e eu percebi um sorriso no  olhar e nos lábios e me consumi na imaginação de um encontro.

Senti desejo de estar com ela, ter sua companhia, ter sua voz nos ouvidos, sorrir o mesmo sorriso, passear os olhos por seu rosto, demorar em seu corpo, sabê-la mulher. Tomava forma em mim um sentimento misterioso, difícil de explicar. Vontade de ficar contemplando, sem exigências que não fosse a presença e o riso. Não era um desejo era uma identificação.

De repente, o encanto se quebrou como vidro estilhaçado. Um rapaz se aproximou delas, cumprimentou-as e saiu com ELA. Ela que já era minha, na imaginação. Senti-me agredido e desmoralizado. Olhei para os lados e parece que todos tinham visto a vergonha de ser passado para trás. Transformei o rapaz em um ser horrível, repelente, feioso, nariz adunco, dedos em garra, como o ogro que vi, num livro de histórias infantis, raptando uma princesa.

Descobri a residência e o nome dela e fiz meu caminho coincidir com a sua rua. Assim eu a via, ora na janela, ora no portão, outras vezes na calçada. E toda vez me saltava o coração e se ela olhava para o meu lado era para mim que estava olhando. Se sorria, era para mim o sorriso. Eu a bebia com os olhos, devorava-a com os desejos. Passei a frequentar a mesma Igreja, e, ao invés de orar, ficava todo o tempo de olhos fixos nela.

Meus colegas e amigos tudo percebiam e me incentivavam. Ela estava gostando de mim, não havia dúvida. Eu percebia pelo seu modo de me olhar, pela maneira de sorrir. Precisava tirar o ogro do caminho. Era ele quem atrapalhava a situação, todos diziam. Tinha que fazer alguma coisa que a emocionasse a tal ponto que ela despertaria da influência do ogro. Em minhas insônias eu me transformava em caçador de ogros dos tempos antigos: cavalo branco ricamente ajaezado, lança e espada brilhantes de tão limpas, elmo e penachos na cabeça. Lutava, derrotava, massacrava o bicho fedido, humilhando-o  a beijar os meus pés, tornar-se escravo. De repente, o ogro assumia o rosto daquele rapaz e eu o humilhava num prazer requintado de maldade e desforra.

Era necessário um plano de conquista e eu já o tinha formado, decorado por tanto o repassar para procurar as falhas. Meus amigos e colegas concordaram com a eficácia do plano. Eu possuía uma bela voz e sabia tocar violão muito bem. Na minha terra, frequentava festinhas para poder cantar e tocar o meu violão, deixando embevecidas as meninas e furiosos os rapazes. Sabia modular a voz deixando-a cálida, sensual. Sabia tirar proveito desse dom. E como sabia... Daí a ideia de uma serenata. Com a ajuda de amigos fiquei sabendo do gosto musical, do cantor predileto, de tudo que ela gostava na música. De posse de todos esses ingredientes planejei a serenata. Conscientemente, ardilosamente. Ela não iria resistir. Ela iria sucumbir, pois sempre foi assim com as outras.

Agora estava eu ali com um envelope a me queimar as mãos. Resolvi abri-lo, lentamente, saboreando o momento, antegozando o prazer. O mundo sorria, o quarto tinha mais luz, o coração ardia no peito. Envelope aberto, surge um papel rosa, perfumado. Perfume de esperança e de ansiedade. Nem as deusas do Olimpo possuíram tal perfume. Letra delicada, caligrafia fina. Poucas palavras:
“Querido Luiz.

Estamos com saudades de você. Faz tempo que não temos notícias e papai e mamãe estão preocupados. Suas notas no estudo estão péssimas e isto traz intranquilidade para todos. Está aproximando a Semana Santa e esperamos com ansiedade a sua chegada. Mamãe, como sempre, vai preparar o seu prato predileto.” Foi só então que reparei no remetente: Marianinha, minha irmã. O mundo explodiu numa explosão galática e meus olhos se fecharam de dor e de raiva.

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