terça-feira, 5 de outubro de 2010

Professor José Maria e a filosofia das obviedades


José Maria da Silva Souza escolheu Santa Rita do Sapucaí para viver, trabalhar e servir. Ele lecionou no Inatel até aposentar-se, mas continua trabalhando no instituto como voluntário. Aqui, José Maria criou a Associação Pró-Desenvolvimento através da Arte (Prodarte). Nesta entrevista, ele fala sobre voluntariado, conhecimento e sua “filosofia das obviedades”. 


Jonas Costa – O senhor atua em vários projetos sociais e culturais de Santa Rita do Sapucaí. Fiquei surpreso ao saber que até no Inatel o senhor é voluntário. Parece que sua missão é servir.

José Maria da Silva Souza – Exatamente. Isso me dá uma alegria imensa.

Jonas – Quando o senhor começou a trabalhar como voluntário em Santa Rita?

José Maria – Desde o primeiro dia em que entrei na cidade, 2 de fevereiro de 1970. Falar disso me causa sempre uma emoção. Algum estudioso das leis divinas me disse uma vez assim: “Acho que você foi escolhido por Deus e não sabe”. Falei para essa pessoa: “Toda criatura veio aqui escolhida por Deus com a missão de viver solidariamente”.
Eu me formei no ITA [Instituto Tecnológico de Aeronáutica, em São José dos Campos] em 1957. Em 58, fui trabalhar na Escola de Engenharia da UFMG [Universidade Federal de Minas Gerais], num prédio de mármore com oito andares. Quando entrei num laboratório que não tinha nada, disse: “Que mulher bonita, incapaz de abrir a boca para falar por causa do mau hálito! Ela se esqueceu do tratamento interior, ficou só no exterior. Puxa vida, não vou casar com essa bichinha”. Desisti no primeiro contato, porque ela tinha que me responder perguntas.
Jonas – O Inatel respondeu a essas perguntas?

José Maria – Nossa! Vim para o Inatel depois de dez anos, angustiado, e já em litígio com a minha concepção religiosa de Deus. Fui católico de comunhão diária até 1968, quando rompi com isso dentro da missa. Pedi licença ao padre e contestei o que ele estava falando. Eu comentava a missa, até o Evangelho eu comentava. Então, o padre tinha consciência de que eu vivia aquilo no cotidiano.
A vinda para Santa Rita eu considero uma graça divina, porque eu queria fazer alguma coisa. Aqui vou trabalhar até o fim da minha vida. Quem quiser trabalhar comigo, muito bem. Quem não quiser, vou buscar e vou encontrar. Precisamos de competência e a competência vem na medida em que você aprofunda o seu conhecimento. Mas o conhecimento tem que ter um embasamento, que é o caráter, coisa que uma percentagem mínima de brasileiros tem. Com caráter, você segue a vida que segui. Meu pai tinha o segundo ano primário, mas lia muito. Ele dizia: “Não entre na molecagem dos governantes do país. Leve a sério o seu serviço, seja honesto”.

Evandro Carvalho – Parece que o discurso do seu pai não mudou até hoje.

José Maria – Sem dúvida, não mudou. Ao fazer uma molecagem, você se sente assediado pela incerteza. Ao fazer o bem, você se sente presenteado pela tranqüilidade e pela paz. Por isso é que, na hora em que entrei aqui [no Inatel], já fui preso à comunidade santarritense. Sou voluntário, não ganho dinheiro, mas a turma não vê o que eu ganho, não vê a alegria que a gente sente. Não tenho que me notabilizar pela erudição, mas pelo ato.
Jonas – O senhor disse, numa entrevista recente, que servir é “despojar-se de si mesmo”.

José Maria – Quando me despojo, não concentro tudo em mim e me associo a uma pessoa que vai complementar o que estou precisando. É inexorável.

Jonas – O voluntariado o completa?

José Maria – Completa! Deus nos criou para a solidariedade. Ninguém precisa me dizer que Deus é a essência do amor, isso é uma coisa óbvia. Criei o filósofo das obviedades, chamado Sr. Praxedes. Sabe quem é? Sou eu. Você não precisa estudar a minha filosofia, qualquer pessoa a conhece. Quando li Sócrates, vi: “homem, conhece-te a ti mesmo”. Por isso, ele é chamado de precursor de Jesus Cristo.
Evandro – Sócrates era um homem que não sabia ler nem escrever, daí a sua incrível capacidade de pensar. Ele defendia que o ser humano não precisa saber ler nem escrever para registrar o que pensa. Hoje, obviamente, ocorre exatamente o inverso do que ocorria na Grécia: temos um excesso de informação à disposição das pessoas. Até que ponto essa disponibilidade difusa de conhecimento pode ser nociva ao ser humano, principalmente à formação do caráter da pessoa?

José Maria – Ela é extremamente nociva ao caráter, porque o conhecimento é tirado daí, não com o objetivo de servir, mas de se exaltar, de se fazer destacar no seio da sociedade. Com isso, afastam-se as pessoas que não têm a cultura, e o co-nhecimento fica na corriola dos intelectuais.

Evandro – O senhor entende que a intelectualidade brasileira, sobretudo a que vive no meio acadêmico, está distante da realidade do país?

José Maria – Sem dúvida! Não se pode conceber uma universidade a serviço de uma elite de intelectuais enclausurada numa torre de marfim. A universidade não conhece a realidade do cotidiano. Não conhece o pobre, a sociedade ca-rente. O Inatel tem a Cas@Viva. Então, ele sai da sua torre e vai servir aos jovens que não podem competir num vestibular.
Você me faz uma pergunta maravilhosa. Vou lhe fazer uma outra para subs-tanciar a minha resposta: o que fazem as universidades neste país? Por que o país continua dependendo a tal ponto dos go-vernantes para ter que usar o dinheiro do povo para pagar os juros da dívida?

Jonas – Então, a dívida intelectual com o povo brasileiro é muito maior do que a dívida financeira?
José Maria – É maior. Esse povo financia a existência das universidades federais. Vim do Maranhão com uma mão na frente e outra atrás. Quando entrei no ITA, tinha tudo. Recebi do meu povo todos os elementos para hoje ostentar o título de engenheiro formado pelo ITA. A turma é de doutores, eu sou um obreiro do conhecimento. Modesto, mas tenho esse conhecimento, maior do que o da maioria dos meus compatriotas. Então, a minha res-ponsabilidade é maior. Não posso dizer: “Você é um joão-ninguém”. Ou como dizia o clero israelense: “Você está leproso, portanto é um endemoninhado, vá para o vale dos imundos em nome de Moisés”. Moisés não escreveu isso, mas os intelectuais deturparam. Falam em ira de Deus. Como Deus pode se irar?
Jonas – Osama Bin Laden está numa lista dos supostos gênios vivos da humanidade. É o 43º colocado, junto com Bill Gates.

José Maria – Não conheço esses senhores. É difícil fazer o julgamento de pessoas. Isso mostra a vulgaridade das pessoas que fazem um trabalho desses.

Evandro – Foi um grupo de intelectuais ingleses que criou essa lista.
José Maria – As pessoas têm mazelas e virtudes. Você julga aquelas coisas que são aparentes, você não julga o cotidiano das pessoas. No cotidiano, quem é pior? Esse cara, o Bin Laden... Não sei nem o nome dele. Hoje, não assisto à televisão, não leio jornal e voto nulo. Mas estou 24 horas envolvido com a minha comunidade, voto no meu prefeito e no meu vereador. Até 1994, votei no menos ruim, porque nunca consegui encontrar algum bom. Vi o Collor diante do Lula: “Você não sabe nem mexer com uma promissória”.

Jonas – Foi uma luta de classes.

José Maria – Uma luta de classes e um desrespeito à pessoa humana! Não vou votar mais no menos ruim. De 1998 para cá, voto nulo. Vou respeitar as autoridades do meu país, mas não quero estar num banquete com elas e não as convido para tomar café.

Evandro – O senhor é otimista com relação à humanidade?

José Maria – Sem dúvida! Deus não é louco, ele não me fez escravo dos proble-mas. Renasci aos 78 anos. É o momento mais importante da minha vida. Estou renascendo sem desencarnar. Que renascimento é esse? É o envolvimento e o comprometimento que me dão prazer, que me dão paz e que me fazem lutar para que os 27 anos da Prodarte não sejam esquecidos. Fracasso é quando o indivíduo deixa de lutar por um ideal.

Jonas – Falando em ideal, qual bandeira o senhor elege como principal? A arte como instrumento de humanização?

José Maria – Não. Se é que tenho que ostentar uma bandeira, ela tem que ser o caráter. O caráter é a essência. O conhecimento fragiliza o caráter, porque empurra para o ganhar, para o eu. E o caráter reage contra isso, grita “nós”.
Evandro – Tem que haver um meio-termo, porque a pessoa sem nenhum conhecimento tende a ter uma deformação muito grande de caráter.

José Maria – Mas o caráter te leva a esse conhecimento. Foi o que aconteceu comigo. Agora, o conhecimento não dá o caráter. Uma coisa é o conhecimento, que é uma ferramenta que você vai usando na medida da sua busca. Outra coisa é a sabedoria, que é o uso desse conhecimento a serviço de uma sociedade que, quando equilibrada, reverte, inexoravelmente, para a sua paz interior, porque você diminui o assédio do caos a nos perseguir. O caos não gosta das coisas belas e nobres.

7 comentários:

  1. Que coisa boa saber que posso ler as maravilhosas materias desse celeiro de cultura e de bem estar que e o Emporio e aind mais poder ler as deliciosas materias que esse Filosofo que amo tanto por ser meu pai, amigo e referencia.
    Parabens a todos sempre!
    Saudades Praxeds! Chegamos ai em breve pra matar essas saudades.
    Com amor dos filhos: Marquinhos, Bianca e Clara

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  2. Sempre disse e afirmo de forma repetitiva: "As maiores lições deixadas poor praxedes, enquanto acadêmico do INATEL, foram as de corredores".

    Fundei e regi o coral do INATEL; sempre tive a disposição as chaves de seu veículo particular, então uma kombi, e o apoio técnico e humanístico de compartilharmos especiarias mineiras por dona Nika. Dona Terezinha honrou a bandeira do coral e sua continuidade desde 1979, participando (ela, Malu e Paulinha) como sopranos ímpares, tornaram o movimento "aeraes perenis".

    Creio que posso afirmar pela nossa turma (INATEL85): "Te amamos".

    Sim, "Deus não é louco, como afirma".
    Somos missionários; não incidentais.
    Que Ele os abençoe hoje3 e sempre!
    dom

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  3. Sempre disse e afirmo de forma repetitiva: "As maiores lições deixadas poor praxedes, enquanto acadêmico do INATEL, foram as de corredores".

    Fundei e regi o coral do INATEL; sempre tive a disposição as chaves de seu veículo particular, então uma kombi, e o apoio técnico e humanístico de compartilharmos especiarias mineiras por dona Nika. Dona Terezinha honrou a bandeira do coral e sua continuidade desde 1979, participando (ela, Malu e Paulinha) como sopranos ímpares, tornaram o movimento "aeraes perenis".

    Creio que posso afirmar pela nossa turma (INATEL85): "Te amamos".

    Sim, "Deus não é louco, como afirma".
    Somos missionários; não incidentais.
    Que Ele os abençoe hoje3 e sempre!
    dom

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  4. Tive a oportunidade de jogar peteca com o querido mestre...quanta sabedoria transborda desse ser humano, se conseguirmos refletir um pouco somente de suas virtudes, teremos o poder de transformar a vida daqueles que nos rodeiam.

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  5. Tive a oportunidade de jogar peteca com o mestre nos anos 90...se pudermos refletir somente um pouco dos ensinamentos do querido Praxedes, teremos o poder de mudar a vida daqueles que nos cercam...
    Adriano Siqueira, dez99

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  6. O Praxedes e seu pandeiro serão inesquecíveis. Rara união de sabedoria e bom humor. Parabéns mestre.

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  7. Grande Praxedes... tive o prazer de participar de seus projetos inclusivos, e sempre tive uma admiração gigantesca por esse belo ser humano. O mundo definitivamente precisa de mais engenheiros como ele! Parabéns pela entrevista Jonas e Evandro. Bruno Dez/05

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