Quem conhece as velhas histórias de Santa Rita, certamente já ouviu falar do Hotel Mello, estabelecimento que abrigava os viajantes que desejavam pernoitar na cidade. O que pouca gente sabe é que a trajetória de seu proprietário, antes de se mudar de São Bento para cá, teria cruzado com a de Monteiro Lobato e dado origem a um processo criminal contra o criador do Sítio do Picapau Amarelo. Leia, a seguir, o trecho de uma nota anexada ao conto “De como quebrei a cabeça da mulher do Mello”, publicada originalmente em 1906 e, posteriormente, editada em um livro de contos chamado “Cidades Mortas”.
“Esta história deu origem a um curioso incidente. Publicada por Lobato em julho de 1906 sob o pseudônimo de Antão de Magalhães, no Minarete, que circulava não só em Pinda como nas cidades vizinhas, caiu sob os olhos de um hoteleiro da cidade de São Bento, de nome Mello e, por coincidência, esposo de uma senhora de apelido Vidoca. O homem viu no artigo alusões ofensivas a ele e sua família – e apresentou queixa crime. O processo não foi adiante, irrisório que era. Apesar disso, a brincadeira custou ao escamado hoteleiro, perto de um conto de réis.”
A seguir, um trecho do conto:
Nunca te contei o meu rompimento com a família Mello? Éramos amicíssimos de longos anos e, sê-lo íamos até hoje, se não fosse a minha imprudência aceitando um convite para lá jantar. Havia à mesa umas dez pessoas, todas íntimas, e as filhas, os genros – um povaréu. D. Vidoca, como sabes, é uma criatura amável e, nesse dia, excedeu-se. Serviu-me sopa, ela própria, mas carregando a mão como se eu fosse um frade. Arrepiou-me aquele pantagruelismo brutal, mas calei a exasperação e ingeri com paciência toda a maranha de fios amarelos, boiantes, num caldo untuoso. Mal absorvera a última colherada, a boa senhora, sem consulta prévia, atocha feijão num prato e me dá.
- Não, minha senhora! Muito obrigado!
- Ora, coma! Deixe de história. Coma que dá sustância.
Não houve escapatória. Tive que aceitar o truculento prato de caroços pretos, coisa que detesto. Olhei para a rodela escura, cor de chocolate, que se me esparramava pelo prato inteiro sem deixar transparecer uma nesga sequer da louça branca, enchi-me de resignação e empreendi o trabalho de Hércules para trasladar tudo para o meu estômago. Meu sangue começou a esquentar e senti o nó pelas cóleras surdas a subir-me à garganta. Estava eu em meio da empreitada quando vi a senhora dirigir para o meu prato um enorme naco de carne de fígado.
- Doutor, um pedacinho de carne assada?
- Mas minha senhora, eu...
- Sempre com cerimônias! Olhe que aqui não usa disso! Coma lá!
E soltou-me no prato o boi...
Senti bagas de suor frio borbulharem na minha testa. O nó da garganta engrossou. Baixei a cabeça, resignado, e encetei a mastigação, matutando sobre o modo de dar cabo daquilo. Comer tudo era impossível; deixar no prato, impolidez.
- Agora, um pouco de arroz!
Lancei um olhar facínora à santa criatura, que o interpretou como de assentimento.
- Eu bem vi que estava querendo arroz.
- Impossível, Dona Vidoca! Peço perdão, mas estou satisfeito. Como pouco e o que tenho no prato é para três dias.
- Luxento! Coma lá!
E zás! Uma, duas, três colheradas, das grandes.
Uma onda de sangue escureceu-me a vista. Tive ímpeto de saltar pela janela. Contive-me, porém e, com a resignação dos verdadeiros mártires, recomecei a mastigar.
- Um pastelzinho agora?
Era demais! A virtuosa criatura abusava da minha situação. Recusei.
- Já sei porque não quer! É que foram feitos por mim! Mas deixe estar...
- Dona Vidoca, pelo amor de Deus! – gaguejei.
- Unzinho só! Para me dar opinião sobre o tempero da massa, sim?
Conheces o meu gênio, sabes com que fa-cilidade saio fora de mim e cometo as maiores loucuras. Naquele momento, entreguei-me a esforços sobrehumanos para conter a fera que mora em mim. E contive-a. Curvei de novo a cabeça e levei à boca mais umas garfadas.
Aqui Mello começou a cortar o leitão.
Refleti: se me oferecem, estouro. E fiquei de sobreaviso, engatilhado para o revide.
Não tardou para que dona Vidoca espetasse no garfo uma costela de leitão e fizesse pontaria para o meu lado.
Ah! Perdi a tramontana! Agarrei uma garrafa que estava na minha frente e abri a cabeça da santa criatura com uma pancada horrível!
De nada mais me lembro. Ouvi o berro, um clamor. Senti o pânico em redor de mim e corri para a rua como um ébrio.
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