terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Dona Iracema e as lendas da Rua Nova (Por Danlary Tomazini)

Há muitos anos, uma das filhas de um imponente barão do café es-tava em um de seus dias não muito felizes. Ao ser sacudida por uma criança pobre, que lhe implorou por um pouco de leite, resolveu deixar a bondade de lado e lhe disse que “não”. A criança morreu desconfiada e o fato ficou na consciência da moça fina que, até o final de seus dias, não conseguiu aliviar o pesar da vida que se foi. 
Nos dias que se seguiram, procurou incansavelmente pelo menino para o leite oferecer. De vestido longo e branco, sombrinhas da mesma cor, com compridas correntes nos pulsos, tão longas que se arrastavam pelo chão, deixava, por onde passava, um som estridente e assustador. Foi assim que, eternamente, a moça de alma cansada, caminhou pelas madrugadas, nas ruas da Rua Nova.

“Eu vi com os meus próprios olhos e tem gente que não acredita! Até falam para as crianças que é mentira, mas eu não sou de contar história. Nunca bebi. Deus e Nossa Senhora sabem que sou mulher direita”. É o que fala Dona Iracema, ao terminar de contar cada uma das lendas de assombração que conhece desde mocinha. Todas acontecem ali, no morro da Rua Nova.

Iracema Araújo é uma das mais antigas moradoras do bairro. Aos 90 anos, já perdeu a conta de quanto tempo mora na mesma casa. “Foi aqui que criei os meus filhos. Acordava de madrugada, ia à fazenda dos Moreira ou ao morro do Cruzeiro, pegava um feixe de lenha e vendia na cidade para comprar pão e mortadela para as crianças. Eu subia aqui para deixar a comida e só depois ia trabalhar”. 

Viúva aos 23 anos, com sete filhos pequenos, veio de Brazópolis Dona Iracema e as lendas da Rua Nova tentar a vida, mas foi mais difícil do que esperava: “Até embaixo de árvore eu dormia com as crianças” - diz ela. Conseguiu emprego em algumas repúblicas, mas o dinheiro ainda era pouco, mal dava pra pagar o aluguel. Ela explica que vender lenha, antes do trabalho, era a única certeza de dar sustento às crianças. 

Ao ser indagada sobre uma série de personalidades que eternizaram o bairro, de forma festeira e criativa, D. Iracema lembrou-se de Samuelzinho. “Ele era meu amigo, sim... um conhecido. Sempre me quis bem e até me chamou, uma vez, pra ver o desfile da Sol Nascente. Mas eu não fui. Nunca vi um carnaval de rua. Casei muito cedo, enviuvei e tinha todos os filhos pra cuidar. Não dava coragem de fazer outra coisa. A gente vive prisioneira da vida, sempre no mesmo lugar.” Ao falarmos de Maria Bonita, o sorriso da D. Iracema apareceu pela primeira vez. “Ela era divina. Me ajudava muito. Trazia comida para os pequenos, me dava atenção, conversava. Uma vez, chegou com uns artistas de fora. Tiraram fotos minhas e das crianças para colocar num jornal não sei da onde. Fizeram isso pra mostrar como a vida era dura pra algumas pessoas, porque tinha gente que não acre-ditava.”, relembra ela. 

- E hoje, D. Iracema? A vida 
melhorou?
- A minha dificuldade não foi embora, mas o bairro está muito melhor. O povo se respeita, acabou aquela terra toda, não tem mais aquela coisa de negro e branco... ainda bem. Meus filhos, graças a Deus, tudo viraram gente. Entre netos, bisnetos e tataranetos já tenho mais de 160. Tá bom, né?”

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