quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Por mares nunca dantes navegados (Ou a imaginação de uma criança durante a missa na Matriz) - Por Nídia Telles

Desde menina que tenho essa mania de tentar descobrir o que as pessoas estão pensando. Na missa dominical das crianças, mal sabia a Dona Maria Trindade que aquela menina de carinha contrita estava, na verdade, passeando em outro paraíso – o da imaginação. Ficava ali sentadinha com a cara mais santa do mundo como quem prestava a maior atenção em tudo o que o Padre José dizia, mas os olhos teimavam em dar uma voltinha com o rabo do olho para ver se pescava alguma coisa mais interessante que os textos sagrados. Quase sem querer, me deparava com os olhos de uma senhora. Suas pupilas giravam sem parar e logo eu achava que elas formavam um ponto de interrogação e pensava: 
- Será que ela esqueceu o feijão no fogo? Ou foi o ferro elétrico que ficou ligado? E isto eu pensava lembrando de minha mãe. Sempre que saíamos de casa e, já estávamos quase na esquina, ela resolvia fazer estas benditas perguntas. E eu respondia:
- Desligou, mamãe. 
Mas a consciência pesava e eu ponderava:
- Não sei, acho que desligou.
Santa consciência! Lá ia eu morro acima verificar se o fogão e o ferro elétrico estavam desligados.

E eu voltava novamente a olhar a mulher e refletia: se ela não esperar a bênção final é porque está mesmo achando que deixou algo ligado. Muitas vezes me esquecia de me certificar desta ponderação no final da missa, pois já tinha ido navegar por outros mares.

Pesquisava novamente, procurando por uma nova vítima. Ah! Achei o véu mais bonito da igreja! Era a Dona Maria Teresa Capistrano com seu véu preto com flores acinzentadas. Como não achava cinza uma cor bonita, enxergava aquelas flores todas prateadas e brilhando. Meu Deus! Ela hoje está com a expressão muito preocupada. Algum dos seus filhos deve estar doente... Imediatamente contava um, dois, três... Seis. Mas será que são sete filhos que ela tem? Por que não contei a semana passada? Agora vou ficar com esta dúvida... Mas que alguém deve estar doente, lá isso deve. Se não for filho, é o marido ou a mãe que já está bem velhinha.

Depois ia achando uma estampa de vestido muito bonita. Rosas, margaridas, flores do campo impressas sobre fundo negro. Muito sabida que era, imediatamente vinha na minha cabeça: esse pano se chama Mamãe Dolores igual a personagem da novela da televisão que minha vó Anizia gostava de acompanhar diariamente. Quando esteve na moda uns tecidos com estampas geométricas, eu me embaraçava naqueles labirintos em preto e branco e quase ficava enjoada de tanto fazer curvas. 

E assim acabava a missa das crianças. Entre um passeio e outro, nem sentia o tempo passar.

Outro dia, dei para navegar nos pensamentos de Dona Sinhá Moreira. Deve ter pensado: Vou ser semeadora de sonhos. Abrir horizontes para aqueles que estão começando uma família. Vou criar um bairro com casinhas singelas, iguais e diferentes ao mesmo tempo. A cada uma darei um deta-lhe particular no alpendre. Alguns serão em arco, outros quadrados, em semicírculo e tudo mais que a geometria, a arquitetura e a habilidade dos pedreiros permitir. As ruas não terão nomes de pessoas mortas. Quero celebrar a vida. Elas terão nomes de sentimentos bons, para que eles sejam sempre renovados, ou das coisas belas da natureza, para que os moradores se lembrem do construtor maior do universo. 

Chamarei Rua Alvorada esta que sobe até a Praça Vista Alegre de onde os moradores avistarão toda a cidade e poderão descansar no final da tarde brincando com seus filhos. A continuação dela será Rua do Crepúsculo, como no dia. Amanhecer, entardecer.

Nesta outra esquina, haverá o encontro da Rua da Harmonia com a Rua da Felicidade, pois uma não pode existir sem a outra. Harmonia sempre traz felicidade e não há felicidade sem harmonia. Ficarão ligadas como irmãs siamesas. Na Rua da Harmonia, colocarei também uma gruta em homenagem a Nossa Senhora de Lourdes. Ela zelará para que haja sempre harmonia entre as famílias que habitarão esse lugar.

O cemitério da cidade ficará localizado no cruzamento das ruas Felicidade e Crepúsculo. O começo e o fim. A vida. Haverá também a Rua da Inspiração e da Esperança. Depois de tudo pronto, as novas famílias irão chegando e, aos poucos, tomarão conta do lugar. Seus risos serão ouvidos pelas ruas que conhecerão de cor seus passos. Na Rua da Esperança, haverá uma exímia doceira chamada Jandira que alimentará os sonhos dos noivos e das debutantes. A esperança de um futuro feliz será estampada em seus bolos ornamentados com príncipes, princesas, lagos azuis e pontes. A Inês Pivoto ocupará a esquina da Esperança com Inspiração. Ela precisará de muita inspiração para confeccionar os vestidos esvoaçantes imaginados pelas noivas e debutantes. O Antônio Sancho ficará bem ao lado de sua irmã Amélia para que seus filhos cresçam juntos e sejam, além de primos, grandes amigos. E nessa casinha da Rua da Esperança, número 61 nascerá uma menina que, mesmo quando estiver com 61 anos, não perderá a esperança de que o futuro será sempre melhor que o presente.

Ah!!! Agora entendi porque nasci numa casinha com a varanda em arco onde os dias eram sempre felizes. Dona Sinhá tinha razão.

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