Antigo engenho do senhor Joaquim Laurindo. |
A Cachaça, com Deus do Céu
Tem o poder de empatar
Porque se Deus dá o juízo
A Cachaça pode tirar.
O churrasco rola gostoso e a saudade bate em retirada quando a cantoria fica mais animada e quando a garganta é molhada com uma pinguinha de boa safra. É coisa de brasileiro o churrasco, comemoração e a pinga, pura ou na caipirinha, ou até em outras associações. Já vi até sorvete de pinga.
Mas não foi sempre assim. Houve uma época, e isso faz muito tempo, que em Portugal a pinga se chamava cachaça e era subproduto dos bagaços de uvas esmagadas pelos pés, como a graspa que hoje encontramos nas adegas produtoras de vi-nho, e não era bebida por gente fina. Sá de Miranda, poeta português que faleceu em 1558 registra a cachaça no seu canto às quintas fidalgas lusitanas e Luís da Câmara Cascudo escreve um prelúdio sobre a “água que passarinho não bebe”. Quando se está numa reunião de amigos ou em alguma comemoração, a primeira dose é chamada de abrideira, pois ela abre a conversa. É o início da festa e diferente da saideira, que é a dose de despedida, a que dá o adeus. Uma é a chegada e a outra, a saída e entre elas um universo de acontecimentos marca a data. Saint Hilaire, em 1819, afirma que o brasileiro é amante da cachaça, mas não é cachaceiro. No jantar tomar uma dose doméstica da branquinha, pura e envelhecida, de cheiro doce e sabor macio. É um ritual que herdamos de nossos antepassados. Só o Brasil sabe apreciar essa especialidade com a certeza de quem conhece o assunto. Os estudiosos dizem que ela teve muitos nomes, adequando-se à sociedade local, igual a gente troca de roupa conforme o clima ou de acordo com a época do ano. Dizem que durante a fabricação do açúcar na época colonial, saía do melaço um vapor que se condensava nos caibros e pingava no chão. Os escravos bebiam desse liquido e se sentiam alegres e animados. Por isso, a cachaça também é chamada de pinga. Pyrard de Laval registra que, em 1610, na Bahia, se fabricava uma garapa azeda, fermentada, cujo sumo era chamado de “Augoa Ardente”. A denominação de Cachaça e Aguardente se confundiu por muito tempo, ficando, hoje, Portugal com a escolha de Aguardente e nós com a de Cachaça.
Mas há uma espécie defeituosa, “aquela que matou o guarda’, mal destilada, feita sem capricho em alambiques deteriorados, cheia de aditivos perigosos, vendida nos botecos sujos e nas vendas de beira de estrada lá do interiorzão do Brasil. Essa bebida queima como vulcão e explode no estômago, provocando azia e arrebenta na cabeça deixando tonto. É dela que Inezita Barroso canta: “a marvada pinga é que me atrapaia, aqui mesmo eu bebo, aqui mesmo eu caio...”
Tomar uma cachaça é um ato interessante. Há quem a tome encostado no balcão e jogando um pouco no chão dizendo que é para o “ santo”. Há quem a tome tapando o nariz porque não gosta do cheiro, e há aqueles, ainda, que a tomam por estarem tristes, ou alegres, ou com frio...
Não sei por que uma bebida tão cheia de história, tão brasileira, é tomada de qualquer jeito, em botecos sujos e mal afamados, por pessoas que a bebem até cair. Ela devia ser tomada em cálice de cristal, em pequena dose, após um ritual de conversa, com a cerimônia das grandes bebidas. Nunca tomá-la sozinho ou encharcar-se dela. Beber com moderação é a grande arte de quem tem bom gosto. É beber para apreciar e não para se consumir num mar de “fogo”.
Temos, em nosso município, produtores de ótimas cachaças, alguns com tradição, nome feito, outros mais recentes, mas todos com esmero e cuidado na fabricação. A cachaça que nasceu sem nobreza, sem acesso palaciano, hoje tem intimidade em todas as classes sociais e é servida no cálice de ricos e pobres, de literatos e analfabetos, de políticos e de sofredores, de religiosos e de ateus. Ela é quebra gelo, abrideira e também saideira. Bebe-se para matar a saudade e para come-morar a alegria, bebe-se na tristeza, no calor e no frio. Ela , quando em exagero, embrutece a pessoa. Em Recife, Ascenso Ferreira registra esta quadra popular:
Suco de cana caiana
Passado nos alambiques
pode sê qui prejudique
mas bebo toda sumana.
Geralmente, ninguém bebe a cachaça pura, pois, quando a vê a boca enche de água.
Belo texto. Em todos os lugares que morei, sempre tive a companhia da cachaça Santa-ritense, seja do senhor Joaquim Laurindo ou do Nego. Quando ofereço essas cachaças aos amigos, não tenho mais sossego, insistem por mais, querem encomendar e comprar.
ResponderExcluirRecomendo, também, a leitura da matéria do Empório sobre a história do senhor Joaquim Laurindo e dos engenhos de cana do Bom Retiro.
Abs, M. Fernando.