quinta-feira, 1 de março de 2012

Woodstock à mineira

Trem de doido

Em 1977, o Brasil ainda vivia os tempos da ditadura. Nesse período, não havia liberdade de expressão, as pessoas tinham medo e a imprensa era coagida por representantes do governo militar. A criatividade e a repressão caminhavam juntas, mas em sentidos opostos. No dia 9 de setembro, chegou a Santa Rita do Sapucaí a notícia de que aconteceria um grande festival que iria reunir os maiores nomes da música brasileira, em comemoração ao aniversário de Milton Nascimento. A cidade escolhida para o “Festival Música no Mundo” foi a terra onde viveram Milton e Wagner Tiso: a sul mineira Três Pontas. O evento estava programado para durar 3 dias e aconteceria de 10 a 13 de setembro. Por temer que a repressão pudesse impedir que o show acontecesse, os organizadores decidiram não fazer muito alarde. 

Bastou a notícia ultrapassar as montanhas do Vale do Sapucaí, para a juventude se alvoroçar. O aviso de que um furacão iria invadir as redondezas fez com que os jovens mais libertários tratassem de encontrar alguma maneira para caçar o rumo de Três Pontas.
Clube da Esquina

Márcia Capistrano Carneiro Silva não pôde conter a expectativa quando ficou sabendo que seus ídolos viriam para tão perto de Santa Rita do Sapucaí. Tratou de reunir suas amigas e convencer a família a autorizar a viagem. O herói da tarde foi o pai de Márcia que alugou uma Kombi e contratou um motorista para levá-las. Enquanto isso, do outro lado da cidade, Tuna reunia-se com os amigos Mário Sérgio, Rodolfo Brusamolin, Robertinho (Gambá), Lúcio (Bitchura), Mariângela, Kika, Mabel, José Benedito e Martha, em busca de uma condução emprestada. Depois de muito procurar, os amigos conseguiram uma Kombi emprestada, compraram uma caixa de isopor com cerveja e partiram rumo ao “Woodstock Mineiro”.

Trem azul

Tuna estava na direção e o combinado era não beberem chegar ao destino. O carro mal chegou à saída da cidade e o motorista já ouviu, injuriado, o estalido das primeiras latinhas sendo abertas. Na outra Kombi, Márcia e suas amigas levaram apenas um garrafão de água. Ao chegarem à Fazenda Paraíso, já em Três Pontas, as meninas quebraram o garrafão ao descer do veículo. Mal sabiam a falta que faria. Como o evento não foi divulgado, não havia vendedores ambulantes. Quem não levou bebida de casa, ficou com a garganta seca por um bom tempo.

Os viajantes chegavam de diferentes lugares e a população de Três Pontas dobrou.  Era tanta gente que a comida e a água da cidade esgotaram-se rapidamente. O clima, por outro lado, era de confraternização e os residentes buscavam abrigar e auxiliar os visitantes.
Nuvem cigana

Os shows aconteceram no alto de uma ladeira que, segundo Tuna, lembrava muito o morro do Santo Cruzeiro. Para chegar até lá era preciso subir a pé, através de uma picada. A caminhada durou cerca de 15 minutos. No meio do trajeto, quando Tuna e seus amigos pararam para descansar, ficaram emocionados ao perceber que havia uma multidão atrás deles. O chão daquela ladeira estava apinhado de jovens em busca de diversão. Estima-se que, nos três dias de evento, cerca de 55 mil pessoas estiveram presentes.

Estrelas

O evento não era pago. Não havia ingresso, não havia bar e nem segurança. Nem precisava. Tudo o que aqueles jovens queriam era ouvir som de qualidade e isso eles teriam de sobra. Os shows foram marcados por artistas como Milton Nascimento, Chico Buarque, Fafá de Belém, Clementina de Jesus, Francis Hime, Gonzaguinha, grupo Azimuth, Wagner Tiso e outros convidados.
Tudo que você podia ser

Dentre os espetáculos mais lendários do “Woodstock Mineiro”, a apresentação dos amigos Chico Buarque e Milton Nascimento foi a que mais impressionou os santa-ritenses. A dupla tinha amarrado um fogo tão grande que mal conseguia se equilibrar no banquinho improvisado sobre o palco de madeira rústica. Fafá de Belém ficou um bom tempo esco-rando Milton e só saiu do palco - correndo, diga-se de passagem - quando Chico Buarque tentou agarrá-la. No clímax do espetáculo, o público pediu para que a dupla cantasse “Apesar de você” e os dois preferiram - por medo da censura - não arriscar. A plateia iniciou, então, um coro de 55 mil vozes que arrepiou não só os santa-ritenses como todos o que ali estavam. No momento de cantar “Travessia”, Milton Nascimento esqueceu a letra e foi socorrido por Gonzaguinha. A multidão foi à loucura. Cada uma daquelas pessoas sabia que aquele evento ficaria marcado na história da MPB.
Batalha campal

Lá pelas tantas, o público iniciou uma batalha de bostas de vaca. Nesse momento, todo mundo se sentou e, quem ousava ficar em pé, era surpreendido com uma placa de esterco mole nas costas. No entanto, em todo o espetáculo não se soube de uma única briga. O ambiente era de harmonia, em um cenário que se tornava cada vez mais lindo, à medida que os raios de sol se despediam da multidão. “A coisa mais bonita daquilo tudo foram as pessoas que chegaram numa boa, sem cobrar nada, e cantaram em um dos morros mais bonitos da cidade”, recorda Bituca.

Um gosto de sol

Quando os nossos representantes voltaram à querida Santa Rita do Sapucaí, tentaram traduzir o que viram, mas qualquer coisa que dissessem seria pouco diante da experiência. Muitos amigos só acreditaram nas histórias, uma semana depois, quando a revista “Manchete” trouxe, em sua capa, uma imagem da multidão que tomou conta do morro do Paraíso. Na foto principal, os santa-ritenses apareciam em destaque na fotografia e foi justamente naquele folhetim que a aventura dava lugar à lenda.

(Carlos Romero Carneiro)

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