quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Trechos de “Engraçadinha - Seus amores e seus pecados” Nelson Rodrigues

Não se sabia ao certo, na família, a idade de tia Ceci. Talvez uns oitenta, setenta e oito. Naquela noite, antes de dormir, tomara o seu banho de assento. E, depois, derramara talco em si mesma. Enfim, cheirosa como um bebê, vestiu-se. Há muito tempo deixara de ter seio. Ao sair do banheiro, veio para o quarto, caminhando pelo corredor, no seu passinho imperceptível — era tão leve e pequenina de uma fragilidade desesperadora — ela pensava na própria morte. Queria para si um enterro como o de Delfim Moreira, puxado por cavalos brancos e de penacho. Sim, antigamente os enterros eram mais bonitos. “Assassinaram o Pinheiro Machado”, pensou.

Tia Ceci entrou no quarto. Preparou-se para dormir. Nas últimas noites, dera para sonhar com o Delfim Moreira. Era um velho bonito (aliás, um presidente sempre é bonito). Ela fora ao Rio e vira o Delfim Moreira. Tirara a cartola para ouvir o Hino Nacional. Quando ele passou, na carruagem, ela, tia Ceci, pôs-se na ponta dos pés; gritou, esganiçadamente: — “Viva o Doutor Delfim Moreira!” Da carruagem, o Presidente sorria, fazendo um aceno — e tinha qualquer coisa de chinês na fisionomia.

Delfim Moreira tinha um sorriso bom. Sim, sorria como se fosse um tio, um pai de todo o mundo. Por vezes, ela achava que o Nosso Senhor devia ter a cara de Delfim Moreira. (capítulo XXIII)

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