sábado, 2 de julho de 2011

Palavras francas, sessões ordinárias

Jonas Costa*

“Os representantes, quase todos de pé, mas dominados e mudos, ouviam a palavra franca, vingadora e formidável do tribuno negro. Não era já um homem, era um princípio que falava... Digo mal: não era um princípio, era uma paixão absoluta, era a paixão da igualdade que rugia!” Lúcio de Mendonça assim descreveu a performance retórica do abolicionista Luiz Gama durante uma assembleia do Partido Republicano Paulista, em 1873. Na ocasião, Gama participava de um acalorado debate sobre a escravidão.

Quase 140 anos depois, no “calor” improvável de um monólogo prosaico a respeito de obras terceirizadas na área de saneamento, o vereador Clarismon Inácio (Bodinho) classificou como “papel de preto” os serviços executados por operários de uma empreiteira em vias públicas santa-ritenses. A declaração preconceituosa – para dizer o mínimo – foi proferida na última terça-feira (28), ao final da mais recente sessão ordinária da Câmara Municipal, na fase conhecida como “palavra franca”. É nessa parte da reunião que o presidente da Câmara franqueia os microfones a seus pares para que estes abordem os temas que lhes parecem convenientes. Ao contrário de Luiz Gama, a fala de Bodinho descortinou sua falta de paixão pela igualdade – a palavra, todavia, foi igualmente franca.

Franqueza revoltante, pois colocou um legislador em colisão com a legislação. Franqueza constrangedora, porque impeliu o presidente municipal do PSDB, Ronaldo Carvalho, a apagar o incêndio verbal de seu correligionário. Justamente Ronaldo, o ex-prefeito que urbanizou a Rua Nova e sempre prestigia as solenidades do 13 de maio; o ex-deputado federal que assinou a primeira Constituição brasileira a qualificar o racismo como crime inafiançável e imprescritível. Não vejo ironia nessa situação paradoxal, apenas tristeza: a facção política liderada por Ronaldo merecia um representante mais identificado com a igualdade racial no Poder Legislativo Municipal.

Dois dias após a declaração racista, Bodinho divulgou uma “nota de esclarecimento”, na qual argumenta que pronunciara aquelas “infelizes palavras” porque estava “movido por intensa emoção”. Emocionou-se ao discursar sobre tubulações de esgoto? Se estava indignado, não precisava ter sido indigno. Emoção e indignação foi o que a fala do vereador produziu ao chegar aos ouvidos da presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Santa Rita, Rosângela Lopes. Em notícia publicada no site da Força Sindical, a líder operária negra admitiu que sua primeira reação foi o choro. “Em 56 anos, eu nunca ouvi algo tão preconceituoso quanto o que esse vereador disse”, declarou Rosângela.

Alguns ou talvez muitos santa-ritenses podem ter interpretado a expressão “papel de preto” como pequeno deslize, força de expressão, fato isolado. O vereador anunciou que subirá à tribuna da Câmara em breve para se explicar. Nesse caso, será inútil tentar encobrir palavras repugnantes com outras previamente escolhidas. Entretanto, nasce uma nova oportunidade para Câmara e Prefeitura fazerem sua parte na reparação das atrocidades cometidas contra os negros durante e após a escravidão.

Prefeitura e Câmara já desperdiçaram uma chance na atual gestão: em fevereiro de 2009, sete dos nove vereadores valeram-se do voto secreto para aceitar o veto do prefeito Paulinho da Cirvale ao projeto de lei que instituiria o Dia Municipal da Consciência Negra. A proposta havia sido aprovada pelo plenário no final da legislatura anterior, mas acabou arquivada em função da pressão de poderosas instituições e empresas da cidade. Magno Magalhães foi o único dos atuais vereadores a expor publicamente sua posição favorável à data comemorativa; o autor do segundo voto permanece desconhecido.

Antes de se tornar palco dos episódios lamentáveis de 2009 e 2011, a Câmara havia ignorado a questão racial por um período de ao menos cinco anos. Foi o que o professor José Cláudio Pereira descobriu em 2006, ao realizar um estudo acerca da discussão de políticas públicas pelo Legislativo Municipal no intervalo de 1999 a 2003: “Não houve uma indicação, sequer, sobre negro, raça, etnia nem minorias diversas (...). Em Santa Rita do Sapucaí, não há dados disponíveis sobre a desigualdade racial do município, mas foi apresentado um documento, na Câmara dos Vereadores, relatando a ‘difícil situação do negro na cidade’. Constatou-se que o debate sobre a desigualdade ainda não é praticado no nível municipal.”

Nos últimos três anos, Prefeitura e Câmara nem mesmo enviaram representantes à sessão cívica do 13 de maio promovida pela Associação Santarritense José do Patrocínio, uma das comemorações mais tradicionais do município. O Poder Executivo limita-se a destinar mísera subvenção anual à associação, cuja sede social está de portas cerradas desde 2004, desabando a conta-gotas.

Os dirigentes municipais têm uma dívida moral a honrar com os afrodescendentes, que segundo o Censo de 2010 somam 27,8% da população santa-ritense. É evidente que a porcentagem oficial está aquém da real. Algo inibe os negros da cidade a se assumirem como tais e a ascenderem socialmente. Quantas empresas e instituições de ensino são dirigidas por negros em Santa Rita? A asneira franca de Bodinho lança luz sobre questões que a Câmara Municipal deve discutir com a sociedade que a elegeu. Sociedade em que negros e brancos têm o mesmo papel de cidadãos e merecem idêntico respeito.

*Jonas Costa, jornalista e servidor público, é autor de “A rainha operária e sua colmeia negra”, livro-reportagem que narra a trajetória da comunidade negra de Santa Rita do Sapucaí

2 comentários:

  1. Parabéns ao jornalista que escreveu o excelente texto!

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  2. Brilhante texto, para variar. No meu entendimento o Sr. Clarismon Inácio não tem condições morais de exercer o mandato. Quebrou o decoro parlamentar, merece imediato processo de CASSAÇÃO DE MANDATO.

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