segunda-feira, 25 de julho de 2011

Cartas de Monteiro Lobato a Santa Rita

A obra "A Barca de Gleyre" apresenta as cartas que Monteiro Lobato escreveu ao amigo Godofredo Rangel.
Quando Delfim Moreira foi governador de Minas Gerais, Santa Rita do Sapucaí recebeu uma atenção toda especial. Nesse período, o interesse do estadista pela cidade era tão grande que ele chegava a nomear promotores e juízes para trabalhar em Santa Rita do Sapucaí que fossem também professores de Português ou Matemática, a fim de que pudessem lecionar nas escolas. Um deles, Godofredo Rangel, era grande amigo de Monteiro Lobato e foi considerado, alguns anos depois, um importante escritor da literatura brasileira.
República Minarete: local onde viveram os estudantes Monteiro Lobato e Godofredo Rangel.
A história

No período em que esteve na cidade, de 1914 a 1918, o juiz trocou centenas de cartas com Lobato mas, infelizmente, suas correspondências não puderam ser publicadas. Rangel deixou registrado em testamento o desejo de que ninguém lesse tais mensagens. Já Lobato, publicou as cartas que enviou em dois grandes volumes conhecidos como "A Barca de Gleyre". Conheça agora a história de tais cartas e a influência que Santa Rita do Sapucaí teve sobre dois grandes nomes da nossa história.

A literatura mundial não registra outra troca de cartas entre escritores que durasse tantos anos como a ocorrida entre Monteiro Lobato e Godofredo Rangel, que se corresponderam com assiduidade de 1903 a 1948. A amizade dos dois começou quando ainda dividiam república e estudavam na Faculdade de Direito de São Paulo, a famosa escola do largo de São Francisco. A correspondência começou quando Lobato regressou a Taubaté, sua cidade natal, e se estendeu ao longo da vida, apenas silenciada com a morte do criador do Jeca Tatu, ocorrida na cidade de São Paulo, em 4 de julho de 1948.

A Barca de Gleyre foi o título dado por Monteiro Lobato à obra que enfeixa as inúmeras cartas que enviou ao seu amigo Godofredo Rangel, autor de romances como Vida Ociosa e Os Bem Casados. Como quase tudo que Lobato escrevia e publicava, o livro vendeu como água e tornou-se best seller. O navegar pelas páginas de A Barca de Gleyre é deveras fascinante. Uma viagem pela história da primeira metade do século XX. Ler a obra, por outro lado, é praticar uma espécie de voyerismo literário. É como espiar uma conversa íntima, conseguindo escutar só um dos lados.
O escritor Monteiro Lobato.
Veja alguns trechos da obra que cita Santa Rita do Sapucaí:

Ao saber que o amigo havia adoecido, Lobato ameniza as dores de Rangel:

“Veio afinal a carta contando sobre sua saúde. Na verdade, a doença que te arriou foi das mais sórdidas. Envenenamento pela nicotina! Puah! Sarrodepitose! Quanto à neurastenia, não compreendo como possa ser vítima de tal coisa um homem dotado da tríplice felicidade: ser casado, ser juiz e ser morador de Santa Rita do Sapucaí.  Morar em Santa Rita... Imagino que seja um tonel de Diógenes, um tonel de paz perpétua num mundo feroz em luta permanente. Essa Santa Rita em que moras e onde dás a A o que é de A e a B o que é de B. Que mais quererá do mundo, Rangel o Incontentável?”

Depois de uma pausa entre as cartas, a ironia de Lobato:

“Viva o ressuscitado! Eu já andava compondo um “Adonais” para o extinto juiz e eletricista (*) de Santa Rita do Sapucaí!”

*Rangel desempenhava a função de contador da empresa de luz da cidade de Santa Rita do Sapucaí, para onde fora removido.

Lobato demonstra que valoriza a amizade entre os dois nesse trecho:

“Eu havia deliberado não escrever a ninguém nesta minha visita ao mar, nem ao administrador lá da fazenda, nem a você, nem ao papa. E conservei-me nesse propósito até hoje, quando o correio me trouxe a tua. Por Netuno! Que redada de cincas de gramática de má morte, ó Cândido de Figueiredo de Santa Rita do Sapucaí! Dou as mãos à palmatória. E dou-me os parabéns de conhecer no mundo um crustáceo tão meticuloso como o meu amigo juiz.”

Quando Rangel termina seu romance “Vida Ociosa”, ainda em Santa Rita do Sapucaí, Monteiro Lobato não consegue esconder a admiração a Rangel e até faz um convite irrecusável ao eterno amigo:
Vida Ociosa, obra prima de Godofredo Rangel, foi escrita em sua passagem por Santa Rita.
“Acabo de ler a última parte de “Vida Ociosa” e corro ao papel para que nada se perca do calor da primeira impressão. Confesso que as partes anteriores me deram suspeita de que em vez de um romance com desenlace a coisa te saísse como uma simples crônica da vida roceira. Enganei-me. Parabéns! Enfim, Rangel, estás consagrado no nosso grupo como o grande romancista que o país esperava  - a nossa roda sabe o que diz, e o que ela diz é a opinião de amanhã. Queres negociar comigo a publicação de Vida Ociosa? O Monteiro Lobato editor do Godofredo Rangel – que maravilha!”

Em outro momento, Lobato parece sentir ciúmes da amizade de Rangel com o célebre poeta Pouso-alegrense Menotti Del Picchia:

“Já sou mais velho do que moço e nada me vale este gamão que jogo há mais de dez anos com o meritíssimo juiz de Santa Rita do Sapucaí. Quando me surge um novo que quer andar comigo pelos mesmos caminhos, sinto-me esquerdo, fujo, enxoto-o. Estas veredas, Rangel, têm dono – são só nossas. Há um Menotti (Del Picchia) que anda querendo invadir a nossa propriedade, esse Menotti de que tanto me falas. Estou com ciúmes. É um braconnier, senhor juiz! Está violando o nosso Paradou.”

Nesse trecho, Lobato se refere a Santa Rita como um lugar ainda intocado pelos vícios da civilização:

“E tu, homem feliz, poço de bom senso, virgem incontaminada que trocas esse empíreo de Santa Rita do Sapucaí pelas escarradeiras cheias de pontas de cigarro que se chamam Centros de Civilização? “
Godofredo Rangel foi juiz em Santa Rita do Sapucaí.
O escritor, encanta-se com a obra de Rangel “Vida Ociosa”:

“A sua apresentação como escritor no jornal Estado de São Paulo operou um efeito siderante. Proclamam agora que és um Machadinho de Assis mineiro. Estás lançado, afinal! Terminei “O saci”. É um livro para crianças, para gente grande ou burra, para sábios folclóricos; ninguém escapa. Depois edito você. Faço tal propaganda de você que todo mundo em São Paulo está de olho em Santa Rita do Sapucaí. Isso aí nem é mais cidadinha mineira: é aquela sarça ardente da Bíblia que Moisés olhava de olho arregalado! Jeovah Shammah! “ 

Ao comentar sua indicação para a direção da Revista do Brasil, Lobato ironiza a pouca influência dos vereadores santarritenses frente ao contexto nacional:

“Lá pela Revista do Brasil querem que eu substitua o Plínio na direção, mas a coisa é segredo. Nada contes aos vereadores de Santa Rita. Pode trazer complicações diplomáticas e ocasionar desvio na rota de Saturno.” 

Neste trecho, mais uma vez, Lobato satiriza a vida monótona que Rangel leva por aqui:

“Oras, viveste longos anos sopitado entre a filarmônica de Santa Rita do Sapucaí e o “fitar o umbigo” da vida introspectiva. Estás fatalmente com mais ostras na quilha do que navio alemão internado em porto neutro.”
Mais uma imagem de Godofredo Rangel.
A seguir, trecho do bate-papo com o escritor Toffo, grande admirador de Godofredo Rangel:

"Rangel morou em Santa Rita por volta de 1918.  A correspondência entre eles nesse período é muito interessante, primeiro porque parece ter sido um período difícil na vida de Rangel. Não sei se você está a par, mas naquela época (diferentemente de hoje) as carreiras de Estado, como juiz e promotor, eram pouco valorizadas e os profissionais ganhavam mal. Por isso, Rangel, além de juiz, reforçava o orçamento doméstico como contador da empresa de força e luz da cidade. Lobato menciona esse fato e, inclusive, numa de suas cartas há uma passagem pitoresca, em que faz uma visita imaginária a Sta. Rita, fingindo bater à porta do amigo e não sendo recebido pela mulher deste, que imaginou ser ele um mascate ou coisa assim. Interessante é que, na época em que li o livro, eu cheguei a fazer uma visita de algumas horas a Santa Rita. Eu vi o prédio do fórum, que é bastante antigo e imaginei que seria o mesmo em que Rangel trabalhara. Cheguei a entrar lá, pensando que talvez ele tenha pisado naquele assoalho... Depois dei uma volta pela cidade, tentando encontrar alguma rua com o nome dele, mas não encontrei. Na época da minha visita, havia muitas casas antigas no centro da cidade, e fiquei pensando que talvez ele tivesse morado em alguma delas. Pela correspondência desse período dá para conhecer toda a gênese de “Vida Ociosa”, a obra-prima de Rangel que tem tudo a ver com Santa Rita. Em alguns aspectos, você pensa estar lendo Lobato mas, na verdade, foi Lobato que se influenciou do estilo dele."

(Reportagem de Carlos Magno Romero Carneiro)

3 comentários:

  1. Grande reportagem Carlos, você está de parabens. Sueli Tomazini Barros Cassal comentou essa correspondencia entre Lobato e Rangel no livro " Amigos Escritos", comentadno detalhes que vai desde o uso do título Barca.......

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  2. Que legal Ivon! Vou procurar esse livro! Deve ter muita coisa legal. Abração!

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  3. Saberia me dizer o porquê do livro se chamar A Barca de Gleyre?

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